quarta-feira, 29 de abril de 2009

"Zero em Comportamento" por Douglas Deó


Um conflito entre infância e adultos – em defesa da infância: esta seria a temática central do filme de Vigo. De então, parte-se para algumas possibilidades de interpretação: além da influência da própria infância do autor (o filme serve como momento catártico para Vigo, extravasando o que marcara repressivamente sua ‘meninice’), Zéro de conduite apresenta-se como discurso libertário onde as frágeis crianças afrontam um bando de adultos repulsivos – tal discurso pode ser (e foi) visto como político a ponto de ser alvo da censura da época em que foi lançado.

A posição do autor frente a esse conflito central – a favor da infância – não fica clara apenas por informações biográficas e históricas como as citadas; se não se vê em toda a narrativa um ponto de vista infantil das situações, pelo menos a irreverência das crianças predomina na totalidade das sequências. Enquanto isso, os adultos são representados de maneira deteriorante – o diretor da escola parece ser uma criança fantasiada; o inspetor geral, além de transcorrer mudo por todo o filme, apresenta-se como personagem de moral odiosa, inclusive rouba os doces das crianças; o professor obeso escarra durante uma aula e, mesmo privando o espectador da visão desse ato, Vigo inspira o asco com o som fora do quadro. É contra esses personagens pitorescos que a infância luta.

Logo na primeira sequência encontram-se exemplos tanto das brincadeiras pueris – as penas, os balões, etc -, quanto da rebeldia de Caussat e Bruel que fumam num vagão onde se vê escrito, na parte externa: não fumantes. No instante do fumo contrapõe-se a fumaça dos cigarros à do trem, vista pela janela do vagão, como símbolo e reforço.

Chega-se à escola e ao dormitório onde não param as brincadeiras e onde identificamos a cumplicidade dos meninos: apesar de certo personagem, chamado Durand, ser chamado pelo vigilante, assumem sua posição, em tom irreverente, Caussat, Colin e Bruel; a princípio nada de excepcional em termos de linguagem cinematográfica até então, mas Colin corre ao banheiro por causa de uma dor de barriga e quando os outros dois retornam a suas camas a câmera os acompanha para em seguida buscar a cama de Colin, que ainda não retornou, e ação só se encerra quando ele volta. É no mínimo gracioso ver a câmera olhar para a cama vazia de Colin; sem palavras ela pergunta: e Colin, cadê? Paulo Emílio em seu trabalho sobre vida e obra de Vigo classifica essa ação cúmplice da câmera como o mais belo momento do filme.

Os recursos lingüísticos que comovem no filme são exatamente os que jogam com o ludismo; são simples enquanto técnica, porém marcantes como forma. O espectador sensível vai ao riso com figura de Huguet - o único adulto que comunga quase em silêncio com as crianças - quer seja quando, na estação, uma baforada e um movimento de chapéu seus são acompanhados por um som de buzina breve e cômico, quer quando ele imita Chaplin – ‘diálogo’ esse carregado de não pequena comunhão ideológica.

Nos exemplos acima, manipulando apenas o som, os movimentos de câmera e as ações dos atores, Vigo conseguiu extrapolar o realismo; aparentemente temos apenas ações diante da câmera que estão sendo captadas exatamente como ocorreram, no entanto a forma como foram trabalhadas carregou tais imagens de significados além do real aparente.

Em outros momentos Vigo apela para recursos não-reais que também servem como parte da construção do universo infantil que estava na intenção do autor – a trucagem, que vai buscar em Mélies, usada no sumiço da bola da mão de um dos alunos e a animação de Bec-de-Gaz (desenhada por um Huguet de cabeça para baixo) que toma vida e transforma-se em Napoleão.

A sequência mais marcante visualmente é a da guerra de travesseiros no dormitório quando o local é completamente revolucionado – para não dizer destruído – apesar da frustrada tentativa do vigilante em dominar as crianças. Sente-se a liberdade no ambiente fabuloso que se forma com as penas voando para todos os lados; sente-se também com a nudez do garoto que faz uma pirueta no instante em que a comitiva de todas as crianças avança em direção à câmera em câmera lenta e a música fantasmagoricamente é tocada ao inverso: de alguma forma aquele instante, artificialmente alongado fica definitivamente gravado na memória de quem o vê.

Esses meios infantis de contar a história são os instrumentos que reforçam o caminho que o roteiro segue: as crianças afrontam seus repressores e elaboram um motim a ser deflagrado no dia de certa comemoração. Tem-se o que se espera e deseja: a festa formal em que os adultos dividem lugar com uma série de bonecos inertes – como se fossem uma coisa só – e os protagonistas, Tabard, Colin, Caussat e Bruel, de cima do telhado, jogam diversos objetos sobre as autoridades. Saliente-se que, nesse instante, manifesta-se que aquela revolta não é contra apenas o mundo das pessoas grandes, mas contra a igreja (representada por um clérigo qualquer), as instituições militares (representada por um oficial) e ao próprio sistema vigente, já que a bandeira da França é trocada pela bandeira-garatuja dos revolucionários. O fim é a liberdade; os quatro rumam telhado acima, em direção ao céu.

sábado, 18 de abril de 2009

“O Gabinete do Dr. Caligari: o reflexo do horror alemão.” Por Cleiton Costa


A arte sempre foi uma das grandes formas da expressão humana. E uma das formas mais criativas. Diante de uma modernidade cada vez mais prática e insensível, ela resistiu, adaptando-se, modernizando-se. Entre os diversos sentimentos por ela expressados, o medo e o horror humano são alguns dos mais impactantes. E o expressionismo alemão utilizou bem a força desse impacto, inicialmente na pintura, arquitetura e literatura no início do século 20, e mais tarde no cinema; estreando com o inevitável clássico: O gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1920, Alemanha). Divulgado dois anos depois de perder a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha chocaria novamente o mundo, agora com esse filme.


“Os espíritos nos cercam por todos os lados. Eles me afastaram do meu coração, lar, de minha esposa e filhos.”


Esse é o primeiro diálogo do filme, dito para um dos protagonistas principais por um homem que representa a loucura viva de todo um trauma alemão. Introduzindo-nos ao mundo fantástico e sombrio do filme.


O enredo do filme é bem conhecido: o misterioso doutor Caligari (Werner Krauss) chega à pequena cidade de Holstenwall com um espetáculo em que seu assistente, o sonâmbulo Cesare (Conrad Veidt), adivinha o futuro das pessoas. Logo depois da chegada da dupla sinistra, uma série de crimes praticados na cidade fazem com que as suspeitas se voltem para o sonâmbulo, flagrado seqüestrando uma moça, Jane (Lil Dagover), pretendente do jovem Francis (Friedrich Feher). Obcecado pelo assunto, Francis descobre que o mandante dos crimes é o próprio doutor Caligari, que controla os atos de Cesare por hipnose.


O roteiro foi escrito pelos jovens alemães Hans Janowitz e Carl Mayer pretendendo ser uma crítica ao absurdo e a violência de qualquer autoridade social, mas o diretor Robert Wiene acrescentou a historia a internação do personagem Francis no manicômio dirigido pelo próprio Dr. Caligari, dando o final ambíguo de que tudo não passava de uma alucinação do personagem.


Opiniões a parte, a trama não foi a peça chave do filme. E sim seu cenário obscuro. Toda uma arquitetura peculiar foi construída para dar o ar de pesadelo da historia. Portas, janelas e até casas inteiras foram deformadas. Também como forma de representar o desenho do horror humano no ambiente. Fundindo outras artes ao cinema, Caligari propôs uma revolução estética na arte cinematográfica.


Enfim, O gabinete do Dr. Caligari foi indiscutivelmente um marco na historia do cinema. Fez o mundo voltar os olhos para a Europa –tirando um pouco a atenção dada ao racista Griffith e aos seus compatriotas hollywoodianos- e possibilitou os intelectuais verem o cinema como expressão artística. Aprofundou na psicologia humana e penetrou em mundos não antes tão bem explorados da consciência. E influenciou toda uma geração futura a ele. Na verdade, o expressionismo cinematográfico alemão, que teve como vanguarda Caligari, não definhou ao longo da década de 30. Dele nasceu os filmes noir e os típicos filmes de terror e suspense (que infelizmente diluíram seu estilo, salvos alguns grandes diretores). E influenciou alguns diretores contemporâneos, como Tim Burton.Na verdade, o expressionismo alemão ainda está bem vivo. E Caligari e Cesare, vanguardistas do horror moderno, continuam à solta.

'George Meliés e “A Viagem à Lua”" por Wilson Rocha




No começo do século XIX o cinema já estava se difundindo como meio de entretenimento. Um dos pioneiros na arte do “make believe” no cinema e que ajudou a nova forma de expressão a se popularizar foi o cineasta e ilusionista francês George Meliés.

Dentre os vários filmes produzidos por sua companhia cinematográfica, a Pathé (que dominou a indústria cinematográfica mundial até quase meados da década de 10), destaca-se um filme que é considerado um marco dos primeiros anos do cinema mudo: “Viagem à Lua”. Nesta que seria uma das primeiras ficções científicas da história do cinema, o mágico-cineasta procurou um tema onde a sociedade que se modernizava tecnologicamente e que estava hávida por novas descobertas pudesse se identificar.

A idéia escolhida para a construção de “Viagem à Lua” foi baseado na obra literária futurista clássica de Julio Vernes “Da Terra à Lua”. Meliés descreve de forma lúdica, ingênua e surreal (embora o surrealismo como movimento artístico só influenciaria o cinema apenas a partir do final da década de 20) os preparativos, a partida e a volta para casa do território lunar de um foguete tripulado.

Viagem à Lua é um filme essencialmente teatral pois a câmera estática apenas registra as situações que ocorrem no palco a sua frente sem praticamente nenhuma mobilidade ou mudança de enquadramento. Embora possua uma narrativa limitada devido a escassez de técnica num período em que o cinema arriscava seus primeiros passos, Viagem á Lua detém não só um valor histórico mas um charme sedutor, resultado deste momento primário da cinematografia.

Poderíamos tentar resgatar o lirismo e a poesia das cenas no filme como o antropoformismo da lua bonachona sorrindo de forma caricatural e dos seres lunares que viram fumaça quando são atingidos pelo guarda-chuva, a comemoração eufórica com a partida da nave ou o figurino confuso e excessivo das personagens que extrapolam o senso da realidade e adentram no campo dos sonhos e da imaginação fértil. A história, contudo, não apresenta uma profundidade maior do que aquela que se percebe nas imagens cujo objetivo maior é divertir os expectadores. Para haver maior aproximação do público ao contexto fantasioso da fábula George Meliés fez uso de elementos improváveis como na cena em que várias mulheres desfilam e acenam para a câmera na ocasião em que preparam o lançamento da nave.

Meliés literalmente brincava com a película cinematográfica mostrando domínio que lhe era permitido e, assim, foi criando seqüências espetaculares com efeitos especiais simples, mas efetivos levando-se em conta que o cinema ainda engatinhava e tentava se estabelecer como uma nova forma de arte.

Sendo assim o grande destaque de “Viagem à Lua” é o conjunto de experimentos elaborados pelo cineasta a fim de manipular o expectador enxertando ilusão nas imagens para dar a realidade pretendida às cenas. Inúmeras dessas fórmulas inovadoras são utilizadas em sua narrativa como a dupla exposição de imagens e trucagens e até mesmo a colorização artificial quadro-a-quadro. Muitos desses efeitos e suas variantes são utilizados fartamente no cinema contemporâneo.

George Meliés foi o maior artesão do cinema mundial levando-se em consideração o conjunto de seus trabalhos e “Viagem à Lua” sua maior realização. A longevidade e o reconhecimento de seu legado se mantêm até hoje.

"O gabinete do Dr. Caligari" por Matheus Gama



“Spirits surround us on every side...
they have driven me from hearth and home,
from wife and child.”
(Homem do Jardim em O Gabinete do Dr. Caligari)



Um café no quartième e os obituários do Le Monde, caros leitores, serão, de certo, uma experiência menos assustadora do que assistir à película germânica recém-lançada pelo diretor Robert Wiene: O Gabinete do Dr. Caligari. Talvez não conformados com a derrota na Guerra que há pouco se encerrou, os alemães insistem em causar calafrios no mundo – desta vez com um filme – e, nessa investida, obtêm êxito! São 71 minutos de encontro com o não-natural, com o inesperado e com uma nova forma de se expressar cinematograficamente.


Trata a película da história de um estranho homem cuja personalidade nada remonta aos clássicos heróis: o Dr. Caligari, o qual, no início da história, chega à cidade de Hotenswall, onde se realiza uma feira de exposições. O Doutor Caligari, interpretado por Werner Krauss, anuncia, então, uma bizarra apresentação: Cesare, o sonâmbulo que de tudo sabe e que pode o futuro prever. Qualquer referência césares romanos talvez não haja sido coincidência, senão intencionalidade de Wiene. Aliás, a produção do filme, por completa, não é realizada de maneira acidental. Pelo contrário, há uma razão para cada elemento que compõe a obra (cenários, interpretações etc.).


Conrad Veidt representa o papel do personagem mais assustador da história. O sonâmbulo Cesare estaria, no dizer de Caligari, dormindo há pelo menos 23 anos. O perfil intrigante de Cesare solidifica-se ainda mais com o fato de que ele, no enredo, é uma espécie de arauto das más novas. Uma série de misteriosos crimes se sucede, sempre envolvendo as figuras dos forasteiros, após os prenúncios macabros do sonâmbulo. Neste filme de Wiene, os forasteiros trazem o infortúnio a Hotenswall. O perigo vem de fora – qualquer semelhança com o cenário do pós-guerra e das fortes imposições dos vencedores (República de Weimar) à nação alemã talvez não seja mera coincidência, igualmente.


Tecnicamente, a maquiagem dos atores é imprescindível para conferir ao filme o tom sombrio e expressionista que se pretendeu conferir à obra. Não há um personagem que não cause estranheza ao espectador, desde a jovem prometida que aparece nas primeiras cenas até os próprios Cesare e Caligari – personagens que, de certo, causaram calafrios nas platéias, por suas feições estranhas e propositadamente incomuns. Um dos personagens, o jovem Alan, inclusive, é bastante representativo para a estética que este filme expressionista quis exibir. (1)


Nesse aspecto do semblante dos personagens, fundamental destacar o trabalho realizado em todos os momentos em que, na história, se quis evidenciar em close o rosto dos personagens. Na verdade, não há closes, o que existe é um fechamento da imagem e o personagem destacado é enquadrado em um círculo, sendo diminuído o espaço de exibição da cena. É como se Wiene houvesse colocado o ponto de concentração em um dos daguerreótipos franceses, em que as bordas da imagem sempre saem escurecidas.


O que dizer da direção de arte de O Gabinete do Dr. Caligari? Peculiar. Se há poucos anos os cenários de Viagem à Lua, de George Melièrs, despertaram o imaginário do público, a pequena cidade intencionalmente distorcida em sua construção, bastante sinuosa e de ângulos irregulares não fica atrás. Por óbvio, os propósitos foram distintos: em Melièrs, a intenção era atiçar o imaginário e a esperança de que um dia o homem possa atingir o nível tecnológico necessário a viajar a Lua; em Wiene, o propósito é despertar o incômodo, o sentimento do macabro, do bizarro, do sentimento alemão de pessimismo pós-guerra. Por essa razão, ouso dizer – e talvez seja parafraseado nas décadas que se seguem – a direção de arte de Caligari traz novas possibilidades artísticas e expressivas para o cinema. Na direção de arte, cumpre destacar, O Gabinete do Dr. Caligari mostra-se revolucionário, porque é construído sob os moldes do movimento artístico do Expressionismo (2). Os intelectuais até o momento não têm dado devida atenção ao cinema, fato que pode ser revisto.


A estética da película de Wiene ainda chama a atenção porque se preocupou em diferenciar, em tonalidades, o dia da noite durante o desenvolver do enredo. As cenas noturnas têm um tom azulado (como é a cena em que se apresenta pela primeira vez a pequena cidade de Hotenswall). O dia e a noite são, de forma proposital, diferenciados na sequência em que se exibe a cidade pela primeira vez. Inicialmente, uma tomada da cidade em perspectiva ampla com o tom azulado. Eis que se dá o close (fechamento de imagem acima referido) e, em seguida, a abertura da imagem, com a ausência do azul, indicando que é dia na cidade e que a feira de exibições está para se iniciar.


A câmera é fixa durante o desenvolver das cenas e não há uma rigidez de enquadramento, como por exemplo na cena de apresentação do personagem Alan. Nessa ocasião, a câmera permanece fixa, enquanto Alan caminha em sua casa, por algumas vezes “saindo de cena”. De certo, isso se dá porque o cinema sofre forte influência do teatro em sua composição nesses tempos. O público é apenas espectador, não participa da ação do filme. A história de Caligari, inclusive, é narrada por um jovem para um velho e para todos os espectadores. As atuações são marcadas pelo exagero de gestos, grande expressividade e dramaticidade dos personagens. A cena em que Cesare tenta matar uma jovem que dorme nos aposentos dela é um bom exemplo.


Embora intrigante e criativo, O Gabinete do Dr. Caligari causa incômodo e estranheza a quem lhe assiste. Desta forma, caros leitores, a indicação é que estejam preparados para presenciar o incomum. Por fim, traço um ousado prospecto: este filme recém-lançado de Robert Wiene, por representar tão fortemente uma cultura de crise e o reflexo do profundo desalento espiritual gestado nas trincheiras desta finalizada Guerra, pode vir a se tornar um dos grandes filmes da história do cinema. Caligari aponta para novas tendências e pode influenciar não apenas artistas alemães, mas de várias nações européias, ou até mesmo dos norte-americanos, que já se aventuram nas produções cinematográficas.

Paris, 1º de abril de 1920.


(1) Uma vez que a resenha foi escrita como se fosse à época do lançamento do filme, apenas aqui cabe o comentário de traçar um paralelo da estética expressionista e, especificamente, do personagem Alan, com os personagens e a estética de Tim Burton, cineasta norte-americano de Edward Mãos de Tesoura, O Estranho Mundo de Jack, A Noiva Cadáver, dentre outros.
(2) Para Rodrigo Carreiro, em crítica ao CineReporter, o Expressionismo em O Gabinete do Dr. Caligari foi levado às últimas consequências. Os cenários são de pano e madeira, as ruas distorcidas são marcadas a giz. Os figurinos são escuros e pesados, marcando forte contraste com o semblante dos personagens. Para Rodrigo, ainda, o filme de Wiene serve de inspiração para os filmes de terror que se seguem, tanto na Europa, quanto em Hollywood.

"ALGUNS TRACOS EXPRESSIONISTAS EM “METROPOLIS” DE FRITZ LANG" por Camila Nascimento Martins


O expressionismo foi uma corrente de arte moderna nascida na pintura dos anos 20 que influenciou o cinema alemão e as outras artes de uma maneira geral. O movimento ressaltava as experiências emocionais do artista sob formas vigorosas, exacerbadas. Seriam impulsos criativos brotando de um nível primitivo da vida emocional - características que conferiram ao movimento uma tendência atemporal.


Apesar da dificuldade em delimitar a cinematografia expressionista visto que não se tratava de uma definição baseada em padrões estéticos rígidos, mas sim de uma nomenclatura concernente a manifestação artística mais popular da época, Doutor Caligari (1920), de Robert Weine, inaugura e é o ponto alto dessa expressão no cinema com seus cenários sinuosos, trabalho de luz claro/escuro e sua morbidez temática.


A ampla aprovação do movimento pela sociedade, no entanto, terminou por esvaziar seu potencial revolucionário dando espaço a uma outra escola conhecida como Nova Subjetividade e principalmente a um estilo cultural conhecido como a Revolução Conservadora que se opunha ao individualismo típico da democracia moderna e se interessava por questões tecnológicas fazendo um elogio a cultura nacional alemã.


Neste contexto encontra-se “Metrópolis” filme de Fritz Lang (1927). A mega produção foi realizada após o declínio do expressionismo, mas contem ainda alguns traços subterrâneos do movimento. Trata-se de uma narrativa realista onde, numa cidade futurista dominada por maquinas e comandadas pelo poder totalitário de seu chefe, os trabalhadores organizados em torno de uma líder de discurso messiânico esperam uma espécie de salvador que promoveria a sua revolução. O filho do chefe da cidade, espécie de príncipe, alheio `as condições sociais dos habitantes “periféricos” (para o filme seria mais apropriado chamá-los de profundos já que Lang verticaliza essa perspectiva social), vai aos subterrâneos da Metropolis – centro funcional da cidade onde coexistem trabalhadores autômatos que se confundem com as maquinas num ritmo desumano experiência que o abala profundamente. Num cemitério do futuro, mas de atmosfera gótica e sombria, muito abaixo da superfície, o inocente príncipe depara-se com a princesa pregando para uma massa de trabalhadores sedentos de esperança... Ele apaixona-se por ela e pela causa de seus irmãos.


O chefe decide que o inventor Rothwang deve mimetizar as feições desta jovem num robô em que o inventor estava trabalhando para relembrar sua falecida amada, mãe inclusive do príncipe porque o chefe de estado havia roubado a sua mulher. Intencionava boicotar o movimento dos trabalhadores naturalmente. Rothwang, personagem cuja caracterização e atuação trazem traços estilísticos do expressionismo é fundamental na manutenção da cidade enquanto engenheiro, mesmo que parecendo um inimigo, do poder supremo. A atuação e a caracterização da sua criação, o robô/clone Maria, seguem a mesma linha mais expressionista também. A casa de Rothwang é outro elemento que se diferencia no cenário futurista da obra, com ares de magia e ocultismo. Para Kracauer “uma das principais características de muitos filmes alemãs pos-Caligari foi justamente a presença desses personagens destituídos de bondade e isolados em egotrips de poder”. É o caso de Rothwang. Ele vai tentar se vingar de todo mundo através de sua obra tecnológica.


Uma das características mais fortes do expressionismo é a diluição do individuo em face do grupo representada em Metropolis pelos marchas das massas trabalhadoras.
Em seu A Tela Demoníaca - Influências de Max Reinhardt e do Expressionismo, Lotte Eisner irá referir-se as seqüências envolvendo a multidão de operários:

“Para descrever as massas dos habitantes da cidade subterrânea em Metropolis, Lang utilizou com felicidade a estilização expressionista: seres privados de personalidade, com ombros arqueados, acostumados a baixar a cabeça, submissos antes de lutar, escravos vestidos com roupas sem época. Notemos a estilização extrema durante a troca de turnos e o encontro de duas colunas que andam num passo ritmicamente marcado. Ou ainda o bloco de operários amontoados nos elevadores, sempre de cabeça baixa, sem existência pessoal. (...) E eis que as massas se desdobram num escalonamento que segue as regras dos coros expressionistas: evoluem em várias divisões, retangulares ou romboidais, cuja absoluta nitidez de contorno nunca será perturbada por um movimento individual”.

Lang sempre teve uma postura critica em relação ao expressionismo. Sempre manteve uma atitude de relativa autonomia em relação aos modismos. Metropolis não deve ser encarado como filme pertencente ao movimento já que não há a predominância da subjetividade, trata-se de uma narrativa realista embora de ficção cientifica, sem a emanação de consciência que promovia as “visões” abstratas dos artistas desta tendência. Seus referencias pictóricas para o filme encontram-se na Nova Subjetividade e no Futurismo. Os traços estilísticos expressionistas na obra têm, portanto, um propósito distinto aos do chamado Movimento Expressionista.

sábado, 4 de abril de 2009

“O Martírio de Joana D’Arc” por Henrique Vieira



Oitenta e dois minutos se passam entre a apresentação do personagem de Maria Falconetti e sua morte, que dá fim ao filme. Oitenta e dois minutos de silêncio absoluto, do qual nem nos lembramos tanto ao final. O mais impressionante é a escolha da fotografia – praticamente sempre em close-up nos personagens- e o desenrolar das cenas, constituídas de longos diálogos que dão, a um filme da era muda – 1928, um curioso traço moderno.


Balázs, em seu livro “Nós Estamos no Filme”, enaltece a importância do close-up no cinema. Diz ele que é pelo close-up que o cineasta direciona a atenção do espectador para o que ele quer, na hora que ele quer, e que é desta forma que se estabelece comunicação entre cineasta/espectador. É por este recurso que a mensagem fílmica se faz subjetiva, e por extensão: humana. Estas condições são básicas para se encarar o cinema como manifestação artística. Balázs fala ainda da força que tem o close-up do rosto humano. Nada mais expressivo que a fisionomia humana! Pelos detalhes de cada movimentação muscular da face, pelo menor índice de arqueamento da sobrancelha..., abre-se um universo de combinações significantes que falam por si só, independentes das referências espacial ou temporal nas quais o personagem esteja inserido.


É por esta vertente que “O Martírio de Joana D’Arc” se faz tão poderoso. O filme é basicamente todo constituído pelos diálogos entre Joana D’Arc e seus acusadores e filmado de forma íntima: em close-ups. E é intimamente que a obra se comunica com seus espectadores. Acompanhamos, do início ao fim, o rosto angustiado de uma Joana D’Arc insegura, temerosa, que se questiona, que se defende... As legendas do filme são necessárias para se entender o conteúdo da discussão mas nunca traduziriam o peso das emoções vividas pela personagem. Do mesmo jeito, não se sentiria a postura cínica e destruidora dos acusadores apenas pelas legendas. A imagem se faz condição sine qua non para que a história possa ser contada, e com toda carga emotiva – humana – que o diretor quis empregar nela.


Outro recurso desse filme, é a permanência insistente do close-up. Afinal, poderia-se utilizá-lo de forma abundante mas não necessariamente exclusiva. No entanto, conta-se nas mãos a quantidade de vezes que se sai de um registro fotográfico fechado. O resultado disso é uma sensação angustiante de aprisionamento, em referência à própria condição da protagonista diante de seu destino.


“O Martírio de Joana D’Arc”, apesar de ter sido feito em 1928, mudo e preto e branco, se faz impressionantemente moderno em sua forma de abordar os personagens e as emoções humanas e antevê, com décadas de avanço, um estilo de filme que irá muito se repetir.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

"Metropolis" por Evandro Mesquita


Metropolis” é um dos marcos iniciais da ficção científica no cinema. Apesar de esse gênero estar presente na história do cinema quase desde o seu início (com “Viagem a Lua”, produzido por George Méliès, sendo um dos mais lembrados dessa época), “Metropolis” veio a consolidar o gênero.


Sendo considerado, por muitos, a mais importante representação do Expressionismo Alemão, este filme é fiel a esta tendência artística que se concentrou na Alemanha entre 1905 e 1930 a qual se manifesta como a arte do instinto, da representação dramática, subjetiva, expressando sentimentos humanos. Utilizando modelos irreais, dá forma plástica ao amor, ao ciúme, ao medo, à solidão, à miséria humana, à prostituição. Deforma-se a figura, para ressaltar o sentimento. Há um predomínio dos valores emocionais sobre a lógica. Este arranjo estético foi utilizado pelo diretor de “Metropolis”, Fritz Lang.


Em “Metropolis”, somos apresentados a uma cidade do futuro (do ano de 2026). Enquanto os operários, que são vitais para o funcionamento das máquinas e da própria cidade (representando, assim, as “mãos” da cidade), vivem nas cidades subterrâneas de Metropolis, os Mestres (que, por sua vez, são a “cabeça” da cidade) vivem na superfície.


O filme tem como tema a luta entre estas duas classes: a operária versus a dominante. Comandados por Freder Fredersen (Gustav Fröhlich), os operários são obrigados a trabalhar sem parar para que a cidade não pare. Um dia, após achar planos de uma possível rebelião nas roupas de um operário que havia morrido em um acidente, o filho de Fredersen, Johhan Fredersen (Alfred Abel), decidiu descer até a cidade dos operários, onde constatou o nível de precariedade e desumanidade em que viviam. Ele próprio experimenta um pouco dessa vida ao substituir um dos operários ficando exausto após ter de trabalhar em uma máquina com ponteiros, não vendo a hora em que as suas 10 horas de turno terminassem. E é naquele local horroroso que ele encontra a bela Maria (interpretada por Brigitte Helm), que em uma das reuniões à qual ele comparece disfarçado de trabalhador comum, vê que os planos da rebelião estão mesmo sendo levados adiante. Mas, ao contrário de que pensavam, eles querem que tudo seja feito na paz, e esperam que um mediador os ajude a fazer isso. Eles acreditam que "não pode haver entendimento entre a mão e o cérebro se o coração não agir como mediador". E é por esse coração que todos aguardam.


Contudo, os planos deles não dão muito certo, pois Freder Frederson pede ajuda a um cientista de sua confiança (interpretado por Rudolf Klein-Rogge), que está trabalhando na construção de um robô que será capaz de substituir os humanos no trabalho. Mais tarde, ele seqüestra Maria, substituindo-a pelo robô, infiltrando-o no meio dos operários para tentar causar a discórdia e sua própria destruição, mostrando assim que estes não merecem o respeito que exigem.


Como podemos ver, em sua visão do futuro, o diretor não estava tão errado, pois hoje em dia já acontece algo parecido: os trabalhadores têm que fazer com que o país não pare, enquanto que a classe mais poderosa somente desfruta de todas as regalias à custa de quem trabalha incessantemente.


Assim, “Metropolis” se confirma como um grande marco não só do Expressionismo Alemão” ou da ficção científica, mas da própria história do cinema. Percebemos que 82 anos depois, a obra de Fritz Lang, está presente em quase todas as grandes cidades de forma mais intensa do que nunca.

"A paixão de Joana D’Arc" por Yanna Luz


“Os bons close-ups irradiam uma atitude humana carinhosa ao contemplar as coisas escondidas, um delicado cuidado (...), o calor da sensibilidade”.
[...]


A expressão facial é uma das manifestações humanas mais subjetivas e individuais, é concretizada no close-up.”


Para quem só acredita vendo, a comprovação de tais afirmações acima vem fortemente registrada no inebriante ‘A paixão de Joana D’Arc’, de Carl Dreyer. Quase todo constituído em closes, principalmente de rostos, ‘A paixão... ’ traz uma espécie de reconstrução, através de um olhar sensível, do processo de julgamento de Joana D’Arc, condenada à fogueira por blasfêmia e bruxaria na França do século quinze.


A atmosfera estética do filme revela-se bastante diferenciada das que eram defendidas por outras correntes da época: a maquiagem parece ausente durante toda a história e a iluminação não ultrapassa os limites da naturalidade. Também cenário e figurino, sem pormenores, são envolvidos por uma simplicidade crua, como se para não desviar a atenção dos espectadores dos conflitos humanos expostos que, em oposição ao ambiente, carregam complexidade e densidade emocional.


O processo de identificação dos espectadores com a personagem de Joana é dado pelo posicionamento da câmera nas cenas, as quais modelam a narração com seus closes, angulações – picadas e contra picadas, utilizadas com intuito de expressar superioridade ou inferioridade do personagem diante das situações – enquadramentos. Observamos, por exemplo, o quanto é fácil sentir-se confrontado durante o julgamento: o posicionamento frontal que a câmera assume diante do juiz revela uma perspicaz subjetividade que faz com que o espectador coloque-se, quando diante do interrogante, no lugar do interrogado, assumindo inconscientemente a posição da própria Joana.


Porém, é de uma presença obrigatoriamente citável um aspecto determinante da identificação do público com D’Arc: a interpretação incontestável de Falconetti, favorecida a cada cena pela audácia fotográfica de Rudolph Maté, que emoldurou com primorosos planos aproximados as perfeitas expressões da atriz incorporadas ao papel. Com a atuação de Falconetti a essência humana foi visível aos olhos e tornou-se, diante das câmeras, quase palpável. A atriz acrescentou à personagem olhos que, em algum momento, inevitavelmente, resgatam de nossa memória a expressão de uma santa católica. Olhos que transbordam medo, angústia, fé e, às vezes, lágrimas. Sempre reveladores de um quase estado de transe intenso de se presenciar.


Por ser tão bem preenchido visualmente, o filme parece sentir-se saciado com o que foi capaz de comunicar na ausência do som: traz uma mudez auto-suficiente em seus sinais-significantes, o que nem sempre ocorre com os filmes mudos.


A ausência sonora no filme chega a acrescentar ao desempenho dos atores: ouvir mesmo o pouco que fala a boca de Joana, talvez fizesse com que seus olhos calassem alguns gritos. A verdadeira expressão facial nos passa mais credibilidade por não possuir as armadilhas que habitam os artifícios da fala.“A paixão de Joana D’Arc”, por fim, sintoniza com maestria a capacidade de exprimir o que se deseja sem sons, o inevitável envolvimento com sua concepção estética e o embalo de suas atuações. Toda essa atmosfera desperta no espectador formas de percepção há muito adormecidas. “Falados os segredos calam”, no entanto, se revelados silenciosamente com o tom certo, como o que foi dado ao filme, algumas cenas ganham o poder de pendurar no ar levitações do espírito.

"O gabinete do Dr. Caligari" por Diogo Didier


O Movimento Expressionista alemão deu conta de todas as artes, mas foi especialmente marcante para a história do cinema. Dele derivam alguns gêneros que hoje são exaustivamente produzidos pela indústria cinematográfica como o terror e o filme noir. Para estudar o expressionismo, algumas obras são fundamentais como “Metropolis” e “M” de Fritz Lang e “O Gabinete do Doutor Caligari” dirigido por Robert Wiene no ano de 1920 (1919?), sobre a qual deter-me-ei nessa resenha.


A trama do filme é simples: uma atração trazida pelo personagem do título chega à cidade em que mora o protagonista e, ao mesmo tempo, assassinatos diversos acontecem. Isso faz com que todos fiquem muito preocupados e se mobilizem para descobrir quem é o assassino. Alguns podem achar a história clichê, nos dias atuais, pois a causa das mortes vem da suspeita mais óbvia, O Dr. Caligari e sua atração – um sonâmbulo, que seria uma “marionete”, pois faz tudo que o seu mestre ordena inclusive matar pessoas.


Seria simples assim se não fosse por alguns detalhes que nos levam a pensar sobre um final que pode ser ambíguo para alguns. É o protagonista, Francis, quem conta toda essa história de terror – aliás, a primeira desse gênero no cinema – para um senhor com quem ele estava conversando. Assim, a maior parte do filme é um flashback das memórias do “herói” Francis.


Ele conta sobre a morte de seu amigo Alan depois de o sonâmbulo, Cesare, profetizá-la. Fala também como a polícia seguiu com as investigações e sobre a noite em que sua amada quase é assassinada por Cesare. Ele só não a matou, pois, para mim, no momento em que ele a viu, sentiu uma forte atração e tentou raptá-la. Não conseguindo carregá-la e fugir da polícia, ele a soltou e continua a correr sozinho, mas, depois de algum tempo, parou e caiu no chão. Acredito que ele tenha morrido, porque, como é um sonâmbulo frio e sem sentimentos, aquela obsessão que ele desenvolveu pela moça foi forte demais para o seu coração adormecido. A donzela, em casa, entra em estado de choque, então, o protagonista decide ir atrás do culpado de tudo: o Dr. Caligari.


No clímax do enredo, descobrimos que Caligari era também o diretor de um manicômio e que sua especialidade era o sonambulismo. Depois de descobertas todas as evidências, ele é internado. No final, a história volta para o tempo em que Francis conversava com o senhor e eles entram no manicômio onde estão todos os personagens principais que o protagonista havia mencionado – Cesare e a moça estão internados e o Dr. Caligari é o diretor do lugar. Depois que Francis tem um ataque ao ver o diretor, ele é posto em uma camisa-de-força e levado para a mesma sala em que vimos, há poucos minutos no filme, Caligari ser confinado, sendo que desta vez a sala está com uma pintura diferente. O diretor diz, ao perceber a confusão que o protagonista estava fazendo dele com o tal Dr. Caligari, que tem finalmente uma cura para o caso.


O cenário do filme é bastante diferente, surreal, com as casas empilhadas umas em cima das outras, paredes, portas e escadarias tortas e por aí vai. Há também uma valorização das formas pontiagudas. Vale ressaltar, ainda, o uso que o diretor faz do jogo de luz e sombra para cobrir imperfeições e enfatizar a ambiência assustadora do filme. Esse visual, de alguma forma, remete ao cubismo de quadros como os de Picasso. Existem, em minha opinião, dois motivos principais para esse cenário “grotesco”: a primeira, e mais óbvia, é pelo fato do filme pertencer ao expressionismo, movimento que valorizava esses cenários fantasiosos/ místicos; e a segunda, seria porque toda a história se passa através do pensamento “torto” de Francis, que, no final do filme, se mostra um louco. Ainda auxilia nessa questão da subjetividade do personagem em cena, as maquiagens pesadas feitas nos personagens como o Dr. Caligari, a moça e Cesare. É visível a diferença entre a maquiagem durante o flashback e aquela da cena final, principalmente quando está se analisando Caligari.


Elementos como a atuação teatral dos personagens também são facilmente reparados. Essas atuações, apesar de toda a teatralidade, estão inseridas naquele universo diegético de forma que não destoam do todo e servem para sublinhar a trama e dar um ar de suspense constante ao filme. Essas duas últimas funções também são exercidas pela música que, na versão restaurada que assisti, acentuam bastante a atmosfera dramática de cada cena, variando, apenas com instrumentos de cordas, de uma música mais “alegre”, como a da primeira sequência da feira em que Caligari faz a sua primeira apresentação, para uma de “suspense”, como as cenas de perseguição.


Os ângulos que não saem de um mesmo lado em cada cenário, mantendo um certo aspecto de frontalidade herdado do teatro – assim como a já citada atuação – contribuem para o espectador se sentir um pouco preso sem conhecer o ambiente como um todo. Essa sensação não passa mesmo com alguns close-ups em rostos ou objetos nos momentos mais dramáticos de cada cena ou com os falsos zooms que o diretor obtém a partir do fechamento da objetiva. Mas não é isso que transforma essa obra em um filme ruim.


Todos esses aspectos aliados ao roteiro bem construído – que usa bastante da simultaneidade dos acontecimentos – fazem com que esse filme seja tão assustador hoje como foi na época do seu lançamento. E no final, fica a dúvida: será que Francis criou a história enquanto já estava no manicômio? Ele enlouqueceu depois de ter vivido ou lido o que ele narrou? O diretor do manicômio era mesmo o Dr. Caligari e aquilo tudo era manipulação dele? Eu fico com a primeira opção, mas não restam dúvidas de que o filme só confirma o velho ditado “de louco, todo mundo tem um pouco”.

"O gabinete do Dr. Caligari" por Rayssa Costa


O expressionismo é, originalmente, um movimento de vanguarda surgido na Alemanha no momento em que o mundo e suas concepções artísticas passam por uma verdadeira revolução dos seus aspectos técnicos. O contexto histórico do expressionismo coincide com a instalação da República de Weimar após a perda da Primeira Guerra Mundial e da consequente assinatura do Tratado de Versalhes. Influenciados pela filosofia de Nietzsche e pela teoria do inconsciente de Freud, os artistas alemães fizeram a arte ultrapassar os limites da realidade, tornando-se expressão pura da subjetividade psicológica e emocional. Com essa nova idéia de arte as obras procuram combater a razão com a fantasia. O cinema expressionista alemão é um movimento estético grandioso que engloba os anos entre 1907 e 1926. Seu auge ocorre por volta dos anos de 1919 e 1920, vindo dessa época também um famoso e maravilhoso filme o qual seguia modelo estético da época: O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiener.


A história do filme se passa em uma pequena aldeia, aonde chega o médico Caligari com o sonâmbulo que prevê o futuro Cesari. Em espetáculos populares de rua, o doutor conta que Cesari dorme em média por 23 anos e logo na primeira noite de apresentação irá acordá-lo através da hipnose. Caligari desperta o “vidente” o qual faz uma previsão pessimista para um dos espectadores: ele morrerá naquela noite. A morte acontece e passa a ser relacionada com uma série de assassinatos ocorridos no pequeno vilarejo. O médico e o sonâmbulo são logo apontados como suspeitos. Um ponto alto do filme é quando Cesari, mandado pelo seu mentor Caligari, se recusa a matar uma bela jovem da vizinhança. O final é inesperado, tem um lado ambíguo e é feito em forma de flashback (maneira não tão usada no então vigente cinema mudo da época).


Indo de encontro radicalmente ao realismo e a verossimilhança, caracteriza-se então por ser um cinema de “visões”, de “alucinações”, da criação de um universo por meio da exacerbação das formas. Por meio de violentos contrastes com o claro e o escuro, noites indistintas, composições de imagens, o filme apresenta um cenário quase que em forma de tela pintada. É possível observar o uso de cores vibrantes e de planos inclinados e isso, de certa forma, conduz o espectador ao desligamento do que é real. Observa-se nesse longa-metragem que assim como o cenário, a atuação dos personagens é feita de forma excessivamente dramática, teatral, pictórica. A maquiagem usada coloca em evidência os olhos e a boca dos atores. Todos esses componentes fílmicos ajudam na abstração do real para a qual é levado o espectador do filme, característica essa primordial do expressionismo alemão.

"O gabinete do Dr. Caligari" por Vitor Lima


Morte de parentes, perda de bens, desestruturação das cidades, provenientes da I Guerra Mundial, geraram um clima de insatisfação, terror e medo em boa parte da população. Dessa maneira, como toda cultura em crise, se fez necessária a criação de uma nova forma de expressão, dada no cinema alemão através do expressionismo.


Jogo do escuro e do claro, formas estranhas, angulações incômodas e principalmente o exagero são algumas das características principais dessa escola, e essas surgiram justamente porque queria ser dado ao cinema um tom mais intimista, subjetivo, do inconsciente, imaginativo e até sombrio, sendo, assim, de certa maneira, reflexo da realidade da época. Um dos primeiros e até mais característicos e importantes filmes do expressionismo foi exatamente “O gabinete do doutor Caligari”, de Robert Wiene, se tornando, até, um marco no cinema.


Inicialmente o filme parece ter uma história comum, um homem (Francis) conversa com outro e inicia a narrar sobre um acontecido na cidade de Holstenwall. Conta que chegou a essa cidade um monge que queria se apresentar na feira com um sonâmbulo. Após o início das apresentações de Caligari (o monge) e Cesare (o sonâmbulo), ocorrem duas mortes: do escrivão e do amigo de Francis, gerando o clima de suspense. O principal suspeito, para Francis, desses crimes é exatamente o sonâmbulo, pois ele previu uma das mortes. A história continua bastante comum, mas a direção de arte, fotografia, figurino e maquiagem já dão um brilho bastante elevado ao filme. O clima de suspense se sucede, e Francis consegue apoio do pai de sua amada, Jane. Eles vão à casa de Caligari examinar Cesare, mas pouco tempo depois chega a notícia de que o assassino foi pego, mas este diz não ser o autor dos dois crimes, fazendo com que o principal suspeito continue sendo o sonâmbulo. Assim, Francis passa um tempo escondido “para ter a certeza” que Cesare não iria atacar ninguém, até que ele descobre que justamente Jane foi atacada pelo sonâmbulo, e que o que ele observou por algum tempo era simplesmente um boneco. Nessa parte do filme já se começa a fugir da normalidade, a história começa a ser mais envolvente. Como Cesare tinha fugido por tentar matar Jane, Caligari também foge, indo para um hospício, mas é seguido por Francis. Nesse local, Francis procura localizar Caligari, e os funcionários pedem para ele falar com o diretor do instituto. Esse momento aparenta ser o clímax do filme, pois o diretor é exatamente o Doutor Caligari! Francis tenta achar evidências para provar que aquele homem era o manipulador do sonâmbulo assassino, até que ele acha anotações bastante incriminadoras. No entanto, só se prova realmente que o diretor era Caligari, quando Cesare aparece morto, e o doutor se descontrola, tentando atacar as pessoas ao redor.


Chega, então, o momento mais importante e até impressionante do filme: é sugerido que tudo aquilo que foi visto pode ser uma ilusão, uma criação da cabeça de Francis, pois todos os personagens (Jane e Cesare) estão na mesma instituição que ele, e que Caligari poderia ser somente seu médico. Esse foi o grande marco do filme, pois trouxe a possibilidade do final aberto, de livre interpretação, sendo bastante coerente até com a idéia da escola que pertence, a qual o inconsciente e a imaginação contam muito (neste caso não só para o espectador, como para o personagem).

O filme realmente surpreende ao ser visto até o fim, e se assistido novamente é perceptível que na verdade não se trata de uma história comum, mas com final extraordinário, é bem densa, coerente e bastante interessante desde o princípio e vai, aos poucos, envolvendo mais e mais o espectador até chegar ao verdadeiro clímax que é a descoberta e a possibilidade de interpretação pessoal, sugestão em detrimento de imposição.

Como foi visto, a história em si já é de grande importância e significado, mas ela não fluiria tanto se não fossem outros aspectos cinematográficos, que se tornam tão necessários e cruciais, quanto a história, na composição do filme. A cenografia, que brinca muito com a perspectiva (casas de tamanhos pequenos, portas tortas, janelas de formatos diversos, objetos deformados vistos de ângulos diferentes, etc.), traz um brilho enorme ao filme. A maquiagem bem forte, com características próprias, justamente com o exagero na atuação faz que com o espectador realmente sinta a obscuridade proposta pela trama. A fotografia brinca muito com o claro e o escuro, com a angulação dos planos, trazendo uma característica bastante singular. Além da importância do figurino exagerado, meio de época, com muito xadrez, que enriquece ainda mais a cena. Enfim, todos esses aspectos juntos possibilitam não só a inovação estética, como também atingem o objetivo da escola expressionista, pois essa composição consegue ser bastante sombria, obscura e o mais importante, consegue realmente criar uma outra realidade.


Dessa maneira, “O gabinete do doutor Caligari” conquistou seu espaço no cinema e conseguiu encantar seu público, tanto é que mais de oito décadas depois de sua criação, é constantemente visto filmes influenciados por sua temática, ou estética, desde Kubrick até Tim Burton.

"O gabinete do Dr. Caligari" por Luiz Marcos de Carvalho



Filme: O Gabinete do Dr. Caligari
Título original: Das kabinett des Dr. Caligari. Ano de produção: 1919 - Diretor: Robert Wiene
Roteiristas: Carl Mayer e Hans Jnowitz. Diretor de Produção: Rudolf Meinert. Elenco: Werner Kraus (Dr. Caligari), Conrad Veidt (Cesare), Friedrich Feher (Francis), Hans Heinz (Alan) e Lil Dagover (Jane).


1) Contexto histórico -
Em 1919, a Europa estava mergulhada em trevas, acabara de sair dos horrores da primeira guerra mundial. A Alemanha derrotada, além da devastação de seu território, sofreu a humilhação dos vencedores, obrigada a pagar pesadas indenizações, assinando o vergonhoso Tratado de Versailles. Vivia então, o pesadelo do pós guerra, a crise econômica e também a crise existencial e de valores, o desmoronamento completo da esperança na civilização.
O Expressionismo surge como uma forma de arte que visava exprimir essa angústia, essa desesperança com o mundo real, que se afigurava tenebroso, sombrio e distorcido. "Para a alma torturada da Alemanha de então, tais filmes repletos de evocações fúnebres, de uma atmosfera de pesadelo, pareciam o reflexo de sua imagem desfigurada e agiam como uma espécie de redenção espiritual”


2) O enredo
Resumidamente é o seguinte:
A primeira cena mostra dois homens, um jovem e um mais velho conversando num banco de um parque. O mais jovem começa a contar uma história fantástica ocorrida num vilarejo alemão. Segue-se então a imagem desse vilarejo onde vemos surgir um personagem bizarro, com uma capa negra, de passos vacilantes. É o Dr. Caligari. Ele se dirige até a prefeitura, a fim de obter autorização para realizar seu espetáculo na feira de variedades da vila. O seu número na feira consiste na apresentação das habilidades psíquicas de um sonâmbulo, chamado Cesare, que se veste com uma malha negra e que vive em estado de animação suspensa.

Nessa mesma noite ocorre o assassinato de um funcionário público da vila. No dia seguinte, dois jovens amigos, Francis e Alan, resolvem ir até a feira de variedades, à procura de diversão e acabam entrando na tenda para assistir a apresentação do Dr. Caligari. No palco, Cesare está numa espécie de caixão. Caligari então proclama os poderes de premonição do sonâmbulo. Então o jovem Alan lhe pergunta: “até quando vou viver”?, ao que o sonâmbulo imediatamente responde: “não passarás desta noite.” Os amigos deixam a feira preocupados e vão se encontrar com Jane que era cortejada por ambos. Acabam esquecendo a sinistra profecia, mas na hora prevista, Cesare invade a casa de Alan e o mata a facadas. Francis associa a morte do amigo com a ameaça feita pelo sonâmbulo e tenta convencer a polícia de suas suspeitas, sem contudo ser levado muito a sério pelas autoridades policiais. Nesse ínterim, o assassino do funcionário público é preso e confessa o crime, porém nega a autoria do assassínio de Alan, que a polícia queria também lhe atribuir.

À procura de Francis e de seu pai, Jane acaba entrando na tenda do Dr. Caligari. Aterrorizada com visão de Cesare ela foge em desabalada carreira. Mais tarde, porém, Cesare vai até a casa dela, encontra-a adormecida, e, no momento em que vai desferir-lhe o golpe mortal, hesita e acaba desistindo, extasiado que fica diante de sua beleza.


Nesse momento ela desperta e ao ver Cesare se apavora. Cesare então a agarra e a carrega através dos telhados recortados e tortuosos da vila. Perseguido, o sonâmbulo larga sua presa e na fuga, cai exausto num poço e morre. Caligari foge e Francis vai ao seu encalço. A perseguição conduz a um asilo de doentes mentais, onde perde a trilha. Indagando dos funcionários do asilo, se há algum paciente que corresponda a descrição que faz do Dr. Caligari, é informado, com surpresa, que não há paciente, mas que sua descrição corresponde à do diretor do asilo. Francis vai até o gabinete do diretor e verifica que se trata realmente da mesma pessoa. O jovem consegue convencer alguns médicos do asilo, que sua história é verdadeira e o grupo resolve então investigar os papéis de Caligari, descobrindo em suas anotações todo o seu plano maligno. Na manhã seguinte, Francis e o grupo de médicos apresentam o corpo do sonâmbulo ao Dr. Caligari, que fica furioso e ataca o grupo, sendo então dominado, colocado numa camisa de força e levado para uma cela.

Então o filme retorna para a cena de abertura, enquanto Francis termina de contar sua história para o velho, no banco, que então descobrimos está localizado nos jardins do asilo.

3) Observações finais
É sabido que a idéia inicial dos roteiristas era a de fazer uma crítica mais ou menos realista, do absurdo de qualquer autoridade social. No entanto, o produtor recusou tais idéias, por considerá-las perigosas e obrigou a que se fizessem alterações no roteiro. No entanto as alterações acabaram, por vias transversas, contribuindo decisivamente para a fantasmagoria expressionista que emana da fita.

E, penso que também a crítica à autoridade social ficou ainda mais forte, embora mais sutil, do que se fosse feita por meio de uma acusação mais ideológica. A meu ver, o sonâmbulo representa a sociedade civil, em particular a da Europa, que se deixa dominar pelas autoridades, representadas pelo Dr. Caligari e, executa , sob seu mando, toda a sorte de atrocidades, como as que ocorrem em uma guerra das proporções das guerras mundiais, permitindo que seus jovens sejam imolados nos campos de batalha. A mensagem clara, embora implícita é a de que a sociedade precisa despertar de seu sonambulismo e se rebelar contra sua manipulação pelas autoridades, a qual conduz invariavelmente às guerras e a seus efeitos catastróficos.

"O encouraçado Potemkin" por Germana Glasner


O encouraçado Potemkin era a advertência ao czar de que até as Forças Armadas podiam abandoná-lo. Pois aquele fazia parte da esquadra russa do Mar Negro e rebelou-se contra a aristocracia czarista, reivindicando reformas políticas.


Em 1925, o cineasta russo, Serguei Eisenstein filmou sobre esse levante. Sua proposta inicial era fazer um filme intitulado “O ano de 1905”, que abrangeria todo o ensaio revolucionário, mas acabou se detendo apenas no episódio do encouraçado Potemkin.


A serviço de um ideal revolucionário, com uma nova percepção cinematográfica empregada, o filme foi lançado em 1926 e começou a ser exportado no mesmo ano, abrindo as portas do engajado cinema soviético para o mundo.


Eisenstein radicaliza a concepção de montagem criando uma visão multifacetada do fenômeno. Exemplo: a cena da morte do marinheiro, onde, a naturalidade é “desnaturalizada”, por ser tão decupada, tão adiada, chegando a parecer multiplicada ou uma sucessão de várias mortes.
Outra inovação trazida pelo filme é a ausência de um personagem principal, não havendo preocupações particulares. Na cena da “escadaria de Odessa” os rostos dos soldados não são mostrados, deles vemos apenas as botas, os fuzis e as silhuetas. Já os rostos dos cidadãos massacrados são mostrados em primeiro plano, grande parte do efeito dramático do filme está na expressão transfigurada desses.


Na mesma cena a multidão foge dos cossacos sem organização alguma, enquanto que, estes são dispostos de forma perfeitamente geométrica numa marcha rígida e exata. Este jogo de formas, mostra o conflito básico do filme entre a desordem libertária das massas e a ordem inflexível do poder.


Há, também, um conflito de direções que tanto inverte o sentido dos barcos de uma tomada para outra como joga com direções contrarias num mesmo plano: se a multidão que passa por cima da ponte caminha para o oeste a multidão que passa por debaixo caminha para leste.
Além de outro conflito, o de cores e tonalidades, presente tanto nas roupas dos personagens quanto no cenário do filme. Em meio a tantos conflitos abordados esteticamente, gerando reflexões psicológicas, o filme reafirma o que Eisenstein dizia: “Eu não sou realista; sou materialista, acredito que a matéria provoca em nós sensações”.


“O encouraçado Pontemkin” trata-se de um filme atemporal, apesar de utilizado como propaganda num determinado momento político continua, mais de oito décadas após seu lançamento, emocionando e provocando reflexões em quem o assiste.

"Eu não amo Joana D’Arc, mas ela continua apaixonada" por Gustavo Ferreira


Quando Paulina Martins substituiu Paola Bracho, Carlos Daniel e todos os outros (tirando a Estephanie, a megera ciumenta) perceberam uma forte melhora. A maquiagem ficou mais discreta, ela parou de ameaçar a pobre Lizete com o colégio interno e aprendeu a sorrir. Dessa forma prova-se que usurpadores nem sempre são maus. O problema começa quando você tenta usurpar o lugar de alguém não tão mau quanto Paola, e, arriscaria, quase tão bom quanto Paulina – a saber, Jesus Cristo.


Esse foi o erro de Joana D’Arc – esse e aquele corte de cabela terrível, e aquelas roupas masculinas, e aqueles olhos deliberadamente esbugalhados para dar a sensação de que ela saiu agora de uma sessão de Carrie, a Estranha, e está com medo de pregar os olhos, exatamente como eu fiquei quando vi o filme.


Enfim, A Paixão de Joana D’Arc – filme tão antigo que teve como intérprete do papel-título a filha legítima da francesa mais famosa do mundo – falhou sob todos os aspectos na tentativa de criar a imagem de uma profetisa ou de emocionar, e ela ficou apenas com aparência de louca – como o Bruno Gagliasso no papel de Tarso na novela das oito.

Mas a maior falha da vida de Joana D’Arc foi, sem dúvida, participar de um filme mudo. Tantas vezes ela tentou falar, mas a ausência de um microfone engoliu o movimento de sua boca em legendas curtas, coitada, transformando sua defesa em vácuo, que talvez os jurados mais bem-intencionados tenham perdido a boa intenção junto com a paciência desperdiçada na leitura labial. Espectadores mais atentos conseguem, inclusive, ver que a pobre Maria Falconetti balbucia a famosa canção, tão cristã, da Amelinha, “Foi Deus Quem Fez Você”, que indubitavelmente a eximiria de todos os pecados e evitaria que fosse queimada. Mas – oh, destino – ela não foi ouvida!

Para provar que a mudez do filme prejudicou a coitada da mártir, comparemos com 12 Angry Men e toda a eloqüência triste de Henry Fonda, que salva o pobre do acusado da forca simplesmente alegando que não se pode ter certeza, que there’s a reasonable doubt (favor evitar comparação com To Kill a Mockingbird, porque um juiz que não acate qualquer argumento – QUALQUER ARGUMENTO - de Atticus Finch, mesmo com aquela voz tão profunda, não é digno de qualquer respaldo).

A Paixão de Joana D’Arc prova, devo acrescentar em digressão automática, duas coisas, sendo 1) filmes falados são mais legais, e 2) franceses são feios como o diabo, e as francesas se parecem com os franceses – Catherine Deneuve é uma marroquina disfarçada, suponho.
Mas, se Joana D’Arc era inocente das acusações que a levaram à fogueira, ela carrega em sua alma, no inferno, um peso maior que a tentativa de ser profeta: ela destruiu a carreira de Mark Twain, que gastou 14 anos de sua vida maravilhosa, cheia de Huck Finns, de Rãs Saltadoras e de Sawyers, com essa vadiazinha francesa que tem como mérito único ter liderado um exército (perdedor) de um país (perdedor) quando ainda vivia seu 17º perdido ano de vida – e o fato de ter sido a primeira pessoa a fazer isso em toda a história só seria realmente um mérito se ela tivesse vencido a Inglaterra. Se Joana D’Arc não tivesse existido, sabe Deus com quantos Huck Finns seríamos presenteados por um Twain ainda são, sem achar que sua pior obra – Personal Recolections of Joan of Arc – era, na verdade, sua obra-prima.

Quanto ao filme, ele tem absolutamente nada de novidade, a não ser os closes infindáveis que um dia gerariam as novelas da Globo – mérito? O enredo corta toda a história do julgamento, e não imaginamos em momento algum o que a fez sentar no banco dos réus – insinuam que ela está ali porque é meio lésbica e endemoninhada e blasfemadora, mas ignoram os crimes de guerra – talvez porque, na época, ainda não tivessem sido declarados os Direitos Universais do Homem, but who the hell gives a damn?
Agora, numa tentativa desesperada de explicar o filme e entregar tudo o que acontece, permitam-me:

Juiz pede que Joana abjure -> Não abjura -> Juiz insiste -> Abjura -> Juiz fica feliz -> “lol, tô brincano, abjuro naum”, diz Joana -> Juiz fica triste -> Juiz a sentencia à fogueira -> Joana morre -> Fim.

O que mais me incomoda na história de Joana D’Arc é, imagino, a incrível ausência de qualquer heroísmo real. Todo o heroísmo é do tipo after life, do tipo “amo a Deus sobre todas as coisas, e darei minha vida pra provar” – mas ela não dá a vida numa Cruzada ou numa luta contra os mouros. Ela dá a vida num tribunal, contra a própria representante de Deus na Terra, e quer ser católica. Faz-me rir, Joana. Faz-me rir muito sobre as cinzas do seu corpo.

P.s.: Se pensarmos numa alegoria mais interessante, em vez de Paulina e Paola, talvez caiba melhor o paralelo Rutinha e Raquel, sendo o espectador o Tonho da Lua (um retardado, que podia empregar seu tempo assistindo a Charlotte’s Web, que é muito mais bonito, e que tem uma morte muito mais tocante e heróica de uma aranha muito mais feminina que a Joana D’Arc do filme, porque, céus! – aquilo é quase a Maria Moura!

"O Gabinete do Doutor Caligari – A chegada do expressionismo na Alemanha" por Tiago Bacelar


Os primeiros longas-metragens alemães foram baseados em livros literários, por isso, eram considerados como artísticos. Eles surgiram no começo dos anos 10 e teve como auge a adaptação em 1913, da obra O Estudante de Praga, de Edgar Allen Poe, dirigida por Stellan Centeio, com fotografia de Guido Seeber e interpretado pelos atores da companhia de Max Reinhardt.


Apesar disso, antes de 1914, muitos filmes estrangeiros foram importados. Como estávamos na era do cinema mudo, não havia barreiras com outras línguas e nesse período as produções dinamarquesas e italianas eram particularmente populares na Alemanha. O desejo do público de assistir filmes com determinados atores fez surgir as primeiras estrelas do cinema alemão. Uma das atrizes pioneiras foi Henny Porten.


A maneira que o cinema foi se popularizando, os alemães começaram a se interessar especialmente por histórias de mistério, característica marcante da grande maioria dos filmes expressionistas, os quais surgiriam no final dos anos 10 com O Gabinete do Doutor Caligari. A chegada da Primeira Guerra Mundial espalhou a destruição na Europa e o boicote na Alemanha a filmes estrangeiros, especialmente os franceses. Esse movimento deixou uma abertura visível no mercado.


Em 1916, existiam cerca de duas mil vagas disponíveis para seleção e posterior atuação em filmes alemães. Em meio a essa carência em termos de produção cinematográfica, começou em 1917, um processo da concentração e a nacionalização parcial da indústria alemã, e em meio a isso surgiu a UFA, inicialmente com a finalidade de produzir filmes propagandistas e de guerra.
Apesar disso, o público alemão não se importou em engolir a medicina patriótica em o açúcar de filmes de entretenimento, produzidos também pela UFA. A proposta deu certo e a UFA levou a indústria cinematográfica na época a maior de toda a Europa, destroçada pelos horrores da Primeira Guerra Mundial.


Assim, levadas pelas estratégias da UFA, a Alemanha viveu no período de 1918 a 1933 o cinema na República de Weimar. No período imediatamente depois da guerra, os filmes serviram como escape da população aos trágicos cenários de destruição vividos pela Alemanha. O crescimento da indústria cinematográfica alemã nesse período foi ajudado pelos altos índices de inflação no final dos anos 10 e início dos anos 20. Os produtores de filmes tiveram que pedir dinheiro em notas promissórias, bastante desvalorizadas na época, e foram depois forçados a pedir reembolsos pelos prejuízos causados com a produção delas.


Não bastasse os apertados orçamentos de produção, a necessidade de juntar dinheiro foi um fator importante para à ascensão do Expressionismo, pelo desejo de todos de mover para frente o cinema alemão e levar um futuro diferente da destruição que varreu a maioria de Europa naquele tempo. Os filmes do Expressionismo confiaram pesadamente no simbolismo e na imagem artística, deixando de lado o realismo da vida real, para contar as suas histórias. Em plena época dos filmes mudos, o mundo já conhecia nomes como os irmãos Lumiere, Griffith e Orson Welles e movimentos como a Escola Clássica Americana e o cinema soviético de Sergei Eisenstein.


Após passar por seus primeiros momentos, o cinema descobre as técnicas de estúdio, os segredos do uso da câmera e uma nova possibilidade de interpretação dos atores, carregados de maquiagem e dramaticidade em cena. Tudo isso começou a nascer na Alemanha, destroçada pela Primeira Guerra Mundial, com um movimento que mexeu com diversas áreas culturais chamado de Expressionismo.


A emergência do cinema alemão após a I Guerra Mundial foi marcada por outro filme, o Gabinete do Doutor Caligari. Macabro, sinistro e mórbido eram os adjetivos preferidos para descrever os filmes alemães. Um das principais virtudes dos diretores dessas produções foi o domínio por completo do estúdio. Uma disciplina coletiva das equipes de produção foi fundamental para a unidade da narrativa como também a perfeita integração de luzes, cenários e atores.


Durante a República de Weimar e durante a Segunda Guerra Mundial, a UFA foi a casa da indústria cinematográfica alemã no período de 1917 a 1945. Esta companhia nasceu, numa união da Decla e Nordisk, em 18 de dezembro de 1917, em Berlim, como um órgão ligado ao governo para produzir filmes propagandistas durante a Primeira Guerra Mundial. O proprietário da Decla, Erich Pommer, virou produtor do primeiro filme de sucesso comercial da UFA, o Gabinete do Doutor Caligari.


Com o sucesso desta produção, a UFA abriu em 1920 o UFA-Palast am Zoo Theatre, em Berlim. Nos anos do cinema mudo, quando os filmes eram facilmente adaptados para outros países, a UFA conseguiu desenvolver uma reputação internacional a altura de competir com os filmes de Hollywood. Fez grandes produções como Metropolis e Doutor Mabuse, de Fritz Lang, e O Anjo Azul, com Marlene Dietrich. Além dos filmes comerciais, a UFA aderiu ao experimentalismo das ruas do avant-garde e do bergfilm, este último um gênero genuinamente alemão que glorificava e romantizava histórias de escaladas de montanhas, de esquiagens em épocas de neve e muitas cenas de ação com avalanches de neve.


Antes da guerra, o caminho em direção à formação estética do cinema alemão estava sendo apoiado pelo expressionismo na literatura e nas artes pelos pintores das obras The Bridge, em Dresden, Blue Rider em Munique, e Metropolis de George Grosz em Berlim. O expressionismo na arte e na literatura foi seguido pelo teatro e pela arquitetura, que no início se restringia apenas a desenhos.


E em seguida veio o cinema. Metropolis foi o último filme expressionista e Caligari o primeiro. O Gabinete do Doutor Caligari é acima de tudo, resultado dos pintores Hermann Warm, Walter Reinmann e Walter Röhrig, dos escritores Carl Mayer e Hans Janowitz e dos atores Werner Krauss e Conrad Veidt.


A história de um jovem sonâmbulo (Conrad Veidt) utilizado para cometer assassinatos a mando de outra pessoa refletia o envio então recente de soldados às trincheiras da Primeira Guerra por autoridades militares. No filme, Wiene retrata o sentimento de dor e descrença da sociedade alemã por meio uma metáfora eficiente, lúgubre e cujo significado permanece até os dias de hoje.

Em seu livro From Caligari to Hitler, o autor Siegfried Kracauer aponta que:

"Caligari não deixa de ser um tirano enlouquecido pelo poder apenas porque é visto como tal por um insano. A criação desta atmosfera de pesadelo jamais teria sido possível, contudo, sem o suporte decisivo de uma bem resolvida concepção estética expressionista. Em Caligari, a cenografia expressionista conseguiu evocar a fisionomia latente de uma pequena aldeia medieval, com ruelas tortuosas e escuras, passagens estreitas espremidas entre casas arruinadas. Essas imagens expressionistas representam uma construção mental que nega a realidade objetiva. A visão de perspectivas falseadas e imprevisíveis, de formas distorcidas, e a consciente intenção de evitar linhas verticais e horizontais, despertam no espectador os sentimentos de insegurança, inquietação e desconforto. Os figurinos usados pelos atores, os móveis e os demais objetos cênicos se incorporam fielmente a esta concepção."


Nascido em 24 de abril de 1873, em Breslau, na Alemanha, Robert Wiene, antes de chegar ao cinema em 1914, foi ator e diretor teatral da companhia Berlin Theater. Sua filmografia antes de 1919 pode ser desprezada sem remorsos, incluindo os filmes que dirigiu o grande ator Emmil Jannings. Em 1919 se tornaria então uma referência que mudaria o rumo do cinema no que se diz respeito à concepção visual, interpretação e ao gênero fantástico.


O Gabinete do Doutor Caligari foi uma espécie de anti-manifesto do expressionismo alemão. Em 1924, Robert Wiene produziu As Mãos de Orlac. Quando veio o nazismo, ficou até com intenção de dirigir e escrever na Alemanha, mas a causa da sua glória com o Gabinete do Doutor Caligari, foi também a causa dos seus males. O filme cheirava tanto a judeu que Hitler e seus comandados passaram a persegui-lo.


Acabou sendo obrigado a se exilar em Paris, onde morreu em 17 de julho de 1938. Não terminou seu último filme, Ultimatum, finalizado por Robert Siodmark 10 dias depois de sua morte de câncer. Mesmo sendo considerado por muitos críticos como um cineasta de segunda categoria, Robert Wiene ficou imortalizado por ter criado um dos filmes mais influentes da história do cinema.


Em O Gabinete do Doutor Caligari, Robet Wiene pintou um retrato na tela do cinema com os jogos selvagens, não realísticos construídos com geometria exagerada, imagens pintadas nos assoalhos e nas paredes para representar objetos, especialmente luz e sombra, e uma história que envolve as alucinações de um homem insano. Outros trabalhos notáveis do Expressionismo são Nosferatu de Friedrich Wilhelm Murnau (1922) e o Golem de Paul Wegener.


Essa inovação extraordinária, em termos de interpretação dos atores, pode ser vista com muito mais força no Gabinete do Doutor Caligari, como atesta Antunes Filho, produtor teatral brasileiro, num ensaio produzido especialmente para o DVD O Gabinete do Doutor Caligari lançado no Brasil pela Continental Home Vídeo para a coleção de filmes chamada de Expressionismo Alemão.


"Este filme de Robert Wiene influenciou o mundo inteiro, estimulando continuamente não somente o trabalho do teatro como também do ator. Perspectivas distorcidas, formas ambíguas, ângulos irregulares, traços fortes e uma consciente fuga das soluções verticais e horizontais simplistas. Ele reflete perfeitamente o universo polifônico expressivo que tanto incentivamos nos exercícios que desenvolvemos para o ator. Fenômeno único na história do cinema, Caligari transfere para a interpretação dos atores o bizarro e o árido da música, pintura, literatura e arquitetura expressionistas. Finalmente, há o alívio da ultrapassada obsessão pela recriação da realidade. Os atores podem então jogar também com os contrastes entre luz e sombra, animus e anima, consciente e inconsciente, yin e yang, ou seja, há pela primeira vez uma possibilidade dinâmica de interpretação, em contínuo movimento. A fusão entre o movimento ralentado, quase se projetando pelas paredes, de Conrad Veidt (sonâmbulo Cesare) e os passos curtos, agudos, reforçados pelo uso da bengala na agitação de Werner Krauss (Doutor Caligari). Tudo isso proporcionando fábulas fantásticas e macabras com um ponto de vista inovado e psicologicamente mórbido."


A interpretação dos atores foi essencial para tornar o Gabinete do Doutor Caligari um filme marcante, que influenciou toda uma série de produções em anos posteriores. E nesse filme, não se pode deixar de falar dos atores Conrad Veidt e Werner Krauss. O primeiro deles nasceu em 1893, em Postdam, na Alemanha, e começou sua carreira, estudando com Max Reinhardt, em Berlim, para logo brilhar nos palcos na companhia de outros grandes atores de formação teatral, como Werner Krauss, conhecido pelo papel do Doutor Caligari, e Emil Jannings.


Seu tipo físico de altura elevada e elegante ajudou-o a reforçar a personagem quase vinda de um pesadelo, um sonâmbulo de movimentos lentos e prolongados, comandados pela consciência perversa de Caligari. “Acorde, Cesare! Eu, Caligari, seu mestre, te ordeno!”. Foi com essa frase que Caligari o despertava do seu sonambulismo. Carregado de maquiagem, Veidt protagonizou no filme um show dos horrores, cheio de suspense e terror se assemelhando, no seu despertar, ao clássico Frankenstein, produzido depois de Caligari.


A partir de O Gabinete do Doutor Caligari, Veidt passou a aceitar personagens da mesma

tipologia e biótipo do seu Cesare. Conrad Veidt trabalhou também na Itália e, depois na América. Voltou para a Alemanha, onde ficou até 1930 e, em seguida, mudou para a Inglaterra, onde fez papéis que estereotipavam seus personagens mais sinistros feitos na Alemanha. Quando veio a Segunda Guerra Mundial, Veidt foi para Hollywood fazer papéis nazistas em diversos filmes e participou como o Major Heinrich Strasser no clássico da Escola Americana, Casablanca.


Morreu em 1943. Conrad Veidt veio de uma expressão talvez única e inimitável. Depois de tantas interpretações assombrosas, só podemos comparar seus personagens aos nossos piores pesadelos. Werner Krauss nasceu em Gestungshausen, Alemanha, e encontrou um lugar de destaque nos palcos de Berlim, nos meados dos anos 10. Sua vocação para encarnar papéis adequados ao espírito artístico alemão, trazido pelo expressionismo, o levou a fazer parte de um grupo que se alastrava pela pintura, música e cinema. Krauss estava encorajado a romper com o passado medíocre do cinema alemão e criar algo de novo e de vanguarda.


Krauss deu a seu Caligari um ar de mistério e peculiaridade com seus passados pausados, ajudados brilhantemente pela forma como usou uma simples bengala, seus olhos arregalados e por suas expressões corporais e faciais, prontas para praticar sua maldade, através do seu fiel soldado, o sonâmbulo Cesare. Werner Krauss permaneceu na Alemanha de Hitler, enquanto os grandes autores de sua geração se exilavam para assumir os principais papéis dos filmes nazistas.


A cumplicidade entre seus sádicos personagens do cinema expressionista com a sua carreira cooptada pelo Terceiro Reich, o colocou como um Fausto real em toda a dimensão alemã da personagem. Não podemos esquecer é claro das presenças, pequenas é verdade, mas não menos importantes de Lil Dagover no papel da garota Jane, a última vítima de Cesare no filme, de Hans Feher, como Alan, o primeiro a receber a previsão macabra do sonâmbulo, e Hans Twardowsky, interpretando Francis, o amigo de Alan.


O filme narra os acontecimentos de um misterioso reaparecimento moderno de um conto, envolvendo a estranha e misteriosa influência de um monge das montanhas sobre um sonâmbulo.


O filme basicamente conta com uma intercalação de planos entre o cenário, onde um jovem conta a um senhor a história da aparição numa feira itinerante do monge (Doutor Caligari) e o sonâmbulo Cesare e no outro a narração ganha corpo e alma. Nessas mudanças de planos, é curioso ver os efeitos com a câmera, abrindo e fechando o foco e a abertura do equipamento, mudando a toda hora o campo de visão do espectador. Todo esse truque de edição traz expectativa para quem assiste e uma sensação estranha de assombro, trevas e curiosidade de saber o que vai acontecer naquela cidade medonha chamada Holstenwall.


Os cenários da cidade foram construídos aos moldes de pinturas expressionistas e cubistas, recheados de casas e paisagens sombrias e tortuosas montadas como se estivessem em cima uma das outras, ressaltando o caos do local em que o filme de Wiene se passa. O Gabinete do Doutor Caligari é marcado também por closes e enquadramentos fechados em personagens carregados de maquiagem, emoções a flor da pele e interpretação exagerada e emotiva dos atores.


Além disso, existe a presença interessante de vários planos e ações diferentes acontecendo no mesmo quadro, em enquadramento aberto. Há uma troca freqüente de planos. Apesar dessas inovações que alcançariam seu auge com Fritz Lang em Metropolis, como o domínio da câmera e do estúdio, que começa a ser notado em O Gabinete do Doutor Caligari, ainda é notável neste filme de Wiene a presença e o posicionamento frontal da câmera.


Técnica primária e lembra de imediato a usada pelos irmãos Lumiere no início do cinema. Tomadas feitas através do vidro da janela para mostrar Caligari em seu recinto foi um prelúdio do que seria utilizado mais tarde com mais requinte, ousadia e movimento de câmera em Cidadão Kane de Orson Welles e outros filmes da Escola Clássica Americana.


A presença de sombras na escuridão, principalmente nas cenas dos crimes cometidos por Cesare, usadas em Caligari com sutileza, foi uma inovação que seria aperfeiçoada anos mais tarde nos filmes de suspense de Hitchcock. Pelas inovações que trouxe em seu Gabinete do Doutor Caligari, Robert Wiene deixou para a história um filme marcante, que mesmo com as limitações na época de sua produção, deixou abertos caminhos para o crescimento da hoje gigantesca indústria cinematográfica. E pela estética criada gerou influências no próprio cinema expressionista alemão, em outras escolas cinematográficas e em produções de culturas totalmente diferentes como é o caso dos mangás.

"Fausto" por Paulo Vicente Gomes Silva Filho


Não é de modo algum desconhecido a péssima fase em que vivia a Alemanha na década de 20 do século passado. Perdendo a primeira guerra, humilhado pelo decidido no tratado de Versalhes, a pobreza assolava o país e auto-estima era uma palavra que já não fazia parte do vocabulário do povo. Sob um clima de incerteza, frustração e descrédito, quanto às promessas da ciência e da técnica, surge o cinema expressionista alemão. Valorizando a dramaticidade das interpretações, músicas exageradas, dissonantes, junto a um excesso de distorções nas formas dos objetos nas cenas, o expressionismo superou a alcunha de mero movimento artístico para ser enquadrado como um comportamento que rediscutia idéias, desconstruindo o legado de sua cultura.


Nesse movimento, podemos destacar a figura de Friedrich Wilhelm Murnau, que com seu Fausto, parecia prenunciar o que estava por vir na Alemanha pós primeira guerra. Fausto é um mito recorrente na Europa, como o do rei Arthur e conta a História de Dr. Fausto, homem de grande erudição e de reconhecido caráter que se deixa ser seduzido por Mefistófeles (literalmente: inimigo da luz), ou seja, o demônio. Mefistofeles vem ao encontro de Fausto quando este, revoltado por não conseguir uma cura para a peste negra, oferece a este a cura e ainda por cima, a juventude dele por um tempo determinado para que ele pudesse ter o amor de Margarida. É interessante notar o uso de certos efeitos especiais no filme como a parte em que o demônio está acima da cidade com suas asas negras, simbolizando a chegada da peste negra a cidade. Ou o dialogo entre o anjo e Mefistófeles cada um apostando sobre a corrupção ou não de Fausto, remetendo a uma dualidade entre bem e mal.


Nesse conflito, vê-se na dramatização, a questão da existência fática, o dia-a-dia. Os personagens em suas expressões exageradas mostrava o quão pesado é cada gesto, cada situação vivida uma vez que já não se têm mais uma concepção tão exata do que é certo ou errado, daquilo que eleva ou aquilo que faz decair. Cada decisão, cada situação tinha todo o peso do universo justamente pela questão de não se saber o quão certo é cada atitude. Esses momentos podem ser identificados com a dicotomia luzes-trevas, os dramas vividos existencialmente recebe,m uma dose muito de luz ou trevas, dependendo de cada cena. Pode-se notar o que foi enunciado acima na parte em que Fausto tem um dialogo dramático com Margarida, onde os atores eram expostos a até 50 graus positivos e as cenas eram repetidas exaustivamente por Murnau para captar toda a força que a imagem poderia colocar, de forma a potencializar a dramaticidade. Com igual função potencializadora, os minúsculos ambientes fechados em onde transbordavam angústia e dúvida nos personagens. Esse exagero também mostra a valorização da experiência vivida frente às descrições calmas, sutis e minuciosas quase sem vida e completamente vazias de questões humanas, dos sistemas doutrinários da época onde tudo era conhecido, mensurável e exposto a uma razão iluminadora.


Isso fica claro quando se olha para o cenário distorcido, as ruas estranhas, lembrando cenas de um sonho. Segundo a pesquisadora de cinema alemão Lotte H. Eisner, esses detalhes serviam para mostrar o inconsciente, o dado não conhecido, aquilo o qual não se tem controle. Isso pode ser visto também no jogo de sombras, uma vez que segundo a mesma pesquisadora os expressionistas usavam a sombra como símbolo para o inconsciente. No fim do filme o amor de Fausto por Margarida o salva, representando o poder do altruísmo, aliás, o amor e as obras pelo bem comum feitas por Fausto que o salvam. É de comum acordo entre vários pesquisadores que está presente não só nesse desfecho, mas na obra de Murnau que é uma crítica a egoidade burguesa presente na época. De fato, o filme é excepcional por todos os elementos que o permeiam: as angústias de uma Alemanha incerta e a questão sempre auto-renovadora do dilema de fausto: trocar princípios em crise, relativizá-los e dessa forma conseguir um ganho.


Profético, o filme prenuncia uma Alemanha que entrega todas as suas expectativas a um regime autoritário que oferece uma melhora significativa das condições de vida, haja vista que na Alemanha da década de 20, faziam fogueiras com marcos alemães porque era mais econômico queimar o dinheiro do que usar o mesmo para comprar lenha. Muitas pessoas voltaram a ter empregos, suas vidas melhoraram, pessoas atingiram cargo de prestigio, acreditando num regime que traria a luz, não importando os métodos.


Por todas essas características é que Fausto se mostra como uma verdadeira obra de arte e se a arte tem uma função pedagógica, Fausto explica a veracidade da afirmação e ensina, usando alegorias proféticas numa linguagem quase religiosa, o perigo de se deixar seduzir pelo fácil, aprazível e de como é atraente e épocas de crise, perder valores. Do ponto de vista histórico-cinematográfico, as inovações e métodos utilizados como expressão tem muito a mostrar ainda nessa época de tantos recursos.

‘O Encouraçado Potemkim’ por Douglas Deó


Potemkim evolui, como narrativa, linearmente, apresentando introdução, desenvolvimento (do conflito) e conclusão (ou resultado). Trata de um fato histórico da revolução russa e, não casualmente, inicia com planos onde o mar revolto choca-se contra rochas.
A apresentação – episódio intitulado ‘Homens e vermes’ – coloca o público em contato com a situação subumana dos tripulantes do encouraçado; inicialmente é mostrado o tratamento despropositado dispensado ao marinheiro mais jovem (acordado com um safanão) e depois é explorado o estado da alimentação dos marinheiros, com a sequência da carne estragada; nesse instante, o close up dos vermes que estão sobre a carne de consumo serve para acentuar o asco do público e não deixar dúvidas sobre a conjuntura que envolve as personagens.
A partir de então brota nos tripulantes a revolta contra as imposições tiranas dos comandantes – acentuada no instante em que o marinheiro que está lavando pratos lê numa das louças ‘o pão nosso de cada dia dai-nos hoje’ e quebra o prato num movimento decomposto em pelo menos nove planos sucessivos e rápidos, tornando o movimento mais longo que seria em tempo real.
Desde sua introdução é possível perceber que o povo é o personagem principal; mesmo havendo certo destaque sobre a figura de Vakulinchuk – principiando e, de certo modo, liderando o motim, além de mais tarde ser abatido tal qual mártir -, o que se observa na evolução da narrativa é o desenvolvimento dos personagens enquanto grupo: de oprimido a revoltado, de revolucionário a vitorioso. Os destaques dados a certos personagens servem para acentuar, às vezes melodramaticamente, a idéia de povo oprimido e tornar cada vez mais plausível a revolução; assim, a própria morte de Vakulinchuk é temporalmente valorizada (tal qual a sequência da quebra do prato) dilatando-se em múltiplos planos a ponto de parecer desconfortavelmente irreal. Outro reforço para essa idéia de massa são os planos que mostram o povo marchando na cidade – panorâmicas olhando a massa do alto, por exemplo.
Em lugar de sufocar a revolta, a morte do marinheiro amplifica-a, transmitindo-a da população do encouraçado para a de Odessa, numa sequência onde os planos alternam choro, discursos inflamados e a execução emocionalmente cadenciada e conjunta do gesto-símbolo de revolta (o braço levantado com a mão cerrada).
Nasce, então, a comunhão entre navio e cidade, transmitida no episódio da escadaria de Odessa, onde, mais uma vez, é exposto o conflito entre opressor e oprimido – representados em ’formatos’ opostos: enquanto a população corre desordenadamente fugindo dos cossacos e alguns dos seus personagens são realçados intensificando a angústia e o sentido dramático – a mãe e o filho mortos impiedosamente, o carrinho com o bebê descendo escada abaixo, lágrimas e apelos -, os soldados czaristas são figuras dos quais não se vê os rostos, que marcham uniforme e implacavelmente, num mecanismo maquinal e desumano, contrapondo a humanidade irregular do povo.
Por fim, a revolução sai vitoriosa como é visto através da adesão da esquadra –“Irmãos!”. Antes do desfecho, Eisenstein provoca o suspense no público alongando o tempo que antecede o instante final, período no qual o espectador de primeira viagem e desavisado certamente esperará um ataque do inimigo.

"O gabinete do Dr. Caligari" por Lucas Andrade


O gabinete do Doutor Caligari, um filme que teve sua estréia em 1919, foi e até hoje ainda é um dos filmes mais importantes da história do cinema. Um dos lançadores da estética expressionista, o filme marcou não só por isso, mas também por suas inovações na questão do cenário, muito influenciado pela arte modernista do começo do século, e pela forma com que o diretor Robert Wiene resolve terminar seu filme, forma essa bastante aberta e que até hoje é interpretada de várias formas.


No filme, doutor Caligari leva consigo um sonâmbulo que estaria, segundo ele, há 23 anos dormindo. Ele pretende apresentar a aberração no ‘parque’ da cidade, e, logo na primeira apresentação,o sonâmbulo, Cesare, faz uma previsão para um dos expectadores presentes e diz que ele irá morrer. A profecia se cumpre e Caligari e Cesare passam a ser suspeitos do crime. No fim, descobrimos que o doutor era diretor de um sanatório e que se utilizava dos pacientes com o objetivo de provar que a mente de um sonâmbulo poderia ser controlada por outros. O doutor é colocado numa camisa de força e levado para uma cela. Tudo parece acabar nesse ponto da história, porém, o filme volta para o seu início, quando um jovem contava para um senhor mais experiente todo o acontecido. Percebe-se que estão sentados em frente a um manicômio e é nesse momento que vemos o diretor do sanatório passando e o jovem começa a gritar freneticamente que aquele é o Doutor Caligari. Porém, por sua fúria, é dominado pelos outros médicos e enfermeiros e levado para uma sala de exame. Doutor Caligari, o diretor estabelecimento, o examina e termina dizendo: “finalmente eu reconheço a sua obsessão. Ele acredita que sou o mítico Caligari. Surpreendente. Mas acho que sei como curá-lo agora”.


Além do enredo bastante inovador para época, o filme influenciou as futuras gerações pela forma como foi feito. Essa fotografia contrastada (claro e escuro), personagens fora do comum, às vezes até ‘bizarros’, e temas como a loucura foram muito usados no expressionismo e, atualmente, estão presentes em quase todos os filmes de cineastas como Tim Burton. No caso particular do Gabinete, um dos artifícios usado pelo diretor que mais chama a atenção o é cenário angulado, meio distorcido. Um filme atual e que tentou usar das mesmas técnicas foi a adaptação dos livros ‘desventuras em série’. O filme conta a história de três irmãos que acabam de perder os pais e passam a morar com um ganancioso tio, que deseja tomar a fortuna que eles receberam como herança. O cenário angulado, o figurino de época ‘exagerado’, a maquiagem carregada, tudo remete ao filme de Wiene. O personagem do tio, conde Olaf, parece ter sido inspirado senão em Cesare, em Nosferatu ou qualquer outro personagem dessa estética.


Na pintura expressionista, o medo, o desconhecido e as dúvidas eram demonstradas a partir de manchas com cores fortes e contrastantes e muitas vezes sem se importar muito com a projeção do real e até distorcendo intencionalmente algumas partes da imagem para ser o mais expressivo possível. Isso também pode ser observado no filme de Robert Wiene, que apesar de não ser colorido usa muito bem o contraste com os tons de cinza. E também como na pintura desse período, no gabinete o interesse maior é reflexão individual e subjetiva. O autor nos propõe varias discussões, entre elas a loucura e o poder de manipulação de uma pessoa sobre outras.

Influenciados pelas dúvidas e incertezas do começo do século e do pós-guerra, os expressionistas quase sempre buscaram temas obscuros, com certo mistério em volta deles. O futuro desconhecido, em Metropolis, o vampiresco, no já citado Nosferatu. No Gabinete, o desconhecimento parte do sonambulismo de um dos personagens. Cesare, personagem muito misterioso, chega em alguns momentos a ser cômico para o público de hoje em dia já que as tensões que se vivem no presente não são as mesmas das do começo do século. Quando se analisa mais a fundo vê-se que as realidades não têm grandes diferenças. As incertezas continuam, o medo do futuro também e ainda se desconhece muitas coisas que nos cercam.

Por todos esses fatores, o filme é não só visto como também admirado e estudado por cinéfilos e acadêmicos de hoje em dia. Talvez pelas inovações, talvez pelas várias interpretações que se pode tirar, talvez pelos personagens... Não tem como se dizer ao certo, mas parece que esse filme entrou para historia por algum desses motivos, ou por todos eles. A única certeza que tive após vê-lo foi que era um filme bom, inovador para época e que ainda me trará muitas surpresas quando eu o assistir novamente.