quinta-feira, 7 de maio de 2009

"O Atalante" por Annyela Rocha


Quatro filmes, 29 anos de vida e o reconhecimento garantido para sempre na história do cinema. Esse foi Jean Vigo, parisiense admirado pelos grandes cineastas e que iniciou o movimento de cinema conhecido como realismo poético francês.
Um dos apaixonados pela obra de Vigo foi François Truffaut. Em um texto de 1970, Les Films de ma vie, Truffaut contou que Jean Vigo uma vez foi aconselhado por um amigo a dar uma pausa em seus trabalhos de cineasta. A resposta do jovem diretor foi a de que ele tinha a sensação de que precisava fazer tudo logo, imediatamente, ou não haveria tempo. Ainda bem que ele seguiu a intuição que sentia: o pressentimento tinha razão de existir, pois quando seu último filme estreou, L’Atalante, Jean Vigo já não estava mais vivo.

E é sobre filme de 1934 que falarei aqui. A crise econômica mundial instaurada em 1929, fez com que na França surgisse uma nova onda de cineastas independentes. A temática social foi abordada pelos filmes dessa época, mas a ideia era mesclar esses problemas numa espécie de sonho. Mostrar o real e fugir dele ao mesmo tempo. Essa característica do realismo poético se apresenta claramente em O Atalante (título brasileiro da obra francesa).

L’Atalante conta a estória de Juliette e Jean. Dita Parlo é a responsável pela personificação da femme-enfante em sua interpretação de Juliette. Camponesa, embarcando em uma viagem pelo mundo, ansiosa pelas novidades e com carinha de inocente. Ar de infantil numa adulta, e em um dos filmes mais erotizados da época. Erotizado porque é possível notar que entre os recém-casados Juliette e Jean a atração é mais física do que qualquer outra coisa. Eles mal se conhecem e, em várias cenas, descobrem um ao outro mais na cama do que em outros lugares. Jean, interpretado por Jean Dasté, é um temperamental apaixonado que, de início, se toma por desejo e ciúmes e, depois, entra em profunda depressão quando perde sua amada.
O jovem casal está em lua-de-mel na embarcação chamada O Atalante e não só tem de se acostumar com a convivência, mas aguentar esse cotidiano juntos dentro da barcaça e longe do contato com outras pessoas. Ainda por cima, há o restante da tripulação para dividir o mesmo espaço. E aí é que está um dos grandes personagens já feitos: Le Père Jules, ou Papa Jules, interpretado por Michael Simon, o velho ajudante do capitão.

Papa Jules navega há muito tempo e conhece, além das mulheres, as sutilezas de muitas cidades do mundo. Às vezes rabugento e outras bastante dócil, Jules vai se acostumando aos poucos com a presença da “patroa” e com o fato de que agora o seu chefe está casado. Uma das sequencias mais bonitas da narrativa é o momento em que Juliette entra no quarto do velho marinheiro. Há caixinhas de música, bonecos, pôsteres, porcelanas, lembrancinhas alegres dos locais que Jules já visitou. Juliette fica admirada e se envolve por aquilo tudo. Papa Jules tira a camisa e mostra também as tatuagens que tem em seu corpo. “Elas me aquecem”, ele diz. Para tirar a felicidade dos dois, Jean entra no quarto enciumado e reclamando com tudo, quebrando muitos dos objetos que Jules havia guardado.

Jean se enche de ciúme em outro momento do filme, quando visita a cidade com Juliette e um comerciante se encanta por ela. Cansada de estar no barco e curiosa, Juliette sai do Atalante e vai à Paris, onde além de conhecer a cidade luz, poderia talvez rever o comerciante. Com raiva, Jean parte para seu próximo destino e deixa a esposa sozinha na cidade.

Apesar do encantamento pelo local, Juliette também nota a pobreza existente ali e a brutalidade da “vida real”. Essa coisa “feia” da vida se mostra também em outros momentos no filme, nos próprios personagens. Afinal, a estória trata de pessoas comuns, pobres, que não veem a realidade o tempo todo com olhos amorosos. É isso, no entanto, que tornam as cenas delicadas mais bonitas, porque quando uma vida cansada encontra algum conforto, aquilo se torna muito especial. O velho Jules demonstra essa ideia muito bem. Ele conhece o mundo, mas conhece na verdade o lado marginal dos países, teve uma vida de muito trabalho e tem muito carinho pelos gatos ou pelos objetos do seu quarto: isso consegue tocar bastante o espectador.

Distantes um do outro, Juliette e Jean percebem a falta que o outro faz. Eles precisam estar juntos como nunca imaginaram. Agora os dois sentem a mesma coisa. As idas e voltas que os fizeram chegar a esse ponto é a poesia do filme. E essa poesia está numa realidade sentida por todo casal, ou toda pessoa, quando se resolve partir para uma grande mudança (para eles, o casamento).

A embarcação, o velho Jules, a inocência de Juliette, tudo metaforiza essa situação de mudança para um casal. Assim como o barco, o relacionamento pode ser bem conduzido ou não. Às vezes uma chuva traz um caminho inesperado, da mesma forma, a vida de casados. O velho vê os jovens e é capaz de saber o que é melhor para eles, a experiência permite prever situações.

Boris Kaufman foi o diretor de fotografia dos filmes de Jean Vigo (inclusive este). Para Kaufman, os trabalhos que realizou com Vigo foram um “paraíso cinematográfico”. A fotografia de Boris nesse filme é inovadora, é delicada, é bela. Traduz o amor em suas imagens.

As atuações são excelentes, em especial a de Michael Simon. A narrativa é simples e bonita. A leveza faz com que este seja considerado por muitos críticos um dos dez melhores filmes já feitos. A única coisa a lamentar quando se assiste ao L’Atalante é que ele tenha sido o último filme de um diretor tão brilhante.

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