terça-feira, 5 de maio de 2009
“Você deve se tornar Caligari!” por Paulo Faltay
O primeiro filme de terror os espectadores não esquecem. Nem o cinema. Com cenários sombrios e estranhos, trilha sonora bem executada e maquiagem e interpretações carregadas para o exagero e o obscuro, O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari, Alemanha, 1919/1920, 71 min.), de Robert Wiene, apresenta os elementos que vão influenciar e constar em quase todas as posteriores produções do gênero.
A história é simples, contada por um prólogo e amarrada no final por um desfecho surpreendente. Inicialmente, somos remetidos, por meio de uma conversa, a uma pequena vila na Alemanha. O médico do título é um senhor que viaja por feiras de atrações bizarras com a sua criatura: o sonâmbulo Cesare. Em suas apresentações, Caligari afirma que Cesare está há 23 anos sem acordar. Porém, em uma exibição, na cidade de Holstenwall, Cesare é desperto e faz uma previsão agourenta a uma pessoa da platéia: o homem não viverá mais do que um dia. A previsão se concretiza e o assassinato do homem acaba sendo relacionado a uma série de nebulosos crimes. O médico e o monstro logo são vistos como suspeitos e passam a ser investigados por Francis, amigo da vítima em busca da verdade sobre a misteriosa morte.
O oculto, o sombrio e uma ambiente em que a aberração e o estranhamento prosperam são as grandes características do filme. O cenário, construído em papel para baratear os custos da produção, é definido por traços, desenhos e proporções irreais, sendo semelhante a quadros e obras de arte da estética expressionista. O que se configura não só em uma preocupação plástica, mas algo que enriquece a narrativa e expõe o estado psicológico em que os personagens estão envoltos. É um cenário do mundo interno, e não de fora.
A trilha sonora que permeia todo o filme é outro instrumento importante para a construção de significados. O desespero mental e o comportamento atormentado de Caligari são retratados com uma realidade incrível. A sensação é ainda mais forte nas cenas dos flashbacks, quando o diretor do hospício mergulha na sua loucura. O arranjo sonoro da cena do ataque à noiva é excelente, compondo uma dos momentos mais tensos do filme.
O exagero dos atores e na maquiagem também são pontos destacáveis. Conrad Veidt, como o sonâmbulo, marca o filme com sua forte interpretação. Sua expressão é passada através dos movimentos mecânicos e de um olhar distante e maligno, elaborado, principalmente, pelo contraste da maquiagem. O impacto do encontro de cores fortes, característica do expressionismo nas artes plásticas, é traduzido aqui no contraste claro/escuro, na época, o máximo que a técnica permitia.
Defenestrado como alienante e escapista, assim como toda a estética expressionista, Caligari possui uma leitura política que pode passar despercebida. Sem ser panfletário, o filme capta muito bem o espírito do tempo da Alemanha, no pós Primeira Guerra. Caligari é um manipulador de um corpo com uma alma opaca, adormecida. A obra parece um misto de libelo e advertência contra a possível manipulação do corpo social por um tirano. O inimigo não é externo, pelo contrário, é psicológico, alimentando-se da fragilidade emocional. É um assustador prenúncio dos anos que vieram a seguir.
O final coroa a obra. Um dos primeiros finais-surpresa do cinema, se não o que inaugura esse expediente, é aterrorizante e ambíguo. Sem som, o letreiro “Du musst Caligari werden! (Você deve se tornar Caligari!)” contribui para deixar o espectador inquieto. Seria tudo fruto de uma mente atormentada ou o poder da manipulação iria além do ponderável?
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