domingo, 7 de junho de 2009
"O Falcão Maltês", por Rebeca Virna
O Falcão Maltês (The Maltese Falcon, 1941) foi considerado por historiadores e críticos de cinema como o primeiro filme noir, tendo disputado esta colocação com Stranger on the Third Floor (1940), de Boris Ingster. O filme, dirigido brilhantemente por John Huston, é uma adaptação do romance policial de mesmo nome escrito por Dashiell Hammett.
A fotografia predominantemente escura e a trilha sonora carregada de graves criam um clima de mistério que permeia todo o filme, envolvendo o espectador com a trama desde o início. No primeiro momento, somos levados a acreditar que a visita da Miss O’Shaughnessy (Mary Astor) ao escritório dos detetives Spade & Archer não passará de um simples caso a ser solucionado pelos dois; todavia, a morte de Archer (Gladys George) e de Floyd Thursby, homem que deveria ser investigado a pedido da moça, revela a Spade (Humphrey Bogart) que há muito mais por trás da história contada a ele. E é assim, aos poucos, que o cerne da trama vai sendo desvelado.
Este recurso narrativo faz com que o espectador se aproxime ainda mais do filme, especialmente por proporcionar uma identificação deste com o detetive Spade: quem está do outro lado da tela também fica tentado a investigar os fatos, assim como faz o detetive, a fim de desvendar as reais intenções das pessoas envolvidas no crime. Quando Spade descobre que o motor da intriga entre a Miss O’Shaughnessy, Joel Cairo e Kasper Gutman é o falcão maltês (relíquia composta de ouro e pedras preciosas desaparecida desde o século XVI) o enredo do filme fica ainda mais denso e o clima de tensão chega ao extremo. É preciso perspicácia para acompanhar os diálogos rápidos e arguciosos repletos de frases de efeitos que mais parecem ter sido tiradas de um livro de Nietzsche ou Schopenhauer.
É também na ocasião da descoberta do falcão que algumas peculiaridades das personagens do filme noir se apresentam. Há personagens que de tão ambíguos chegam a parecer esquizofrênicos, solicitando uma de suas múltiplas personalidades sempre que lhes convém. Basta observar o comportamento da Miss O’Shaughnessy que, quando pressionada pelo detetive, confessa ter mentido sobre os motivos que a levou a procurar os seus serviços, e o de Kasper Gutman, que concordar em utilizar o seu fiel empregado, que diz considerar como filho, como bode expiatório. É válido lembrar que o filme noir não surgiu com o intuito de inaugurar uma nova estética cinematográfica; alguns teóricos afirmam que, antes de qualquer outra coisa, o filme noir teve como objetivo fazer uma crítica à sociedade americana pós-guerra.
Abro um pequeno parêntese aqui para explicitar em que contexto histórico surgiu o noir. Os Estados Unidos enfrentavam uma séria crise econômica decorrente do fim da primeira guerra e do começo da segunda. A pobreza, ou medo de tornar-se parte dela, foi o fator propulsor para a realização dos mais diversos tipos de crime e a justificativa para se tomar atitudes reprováveis pela sociedade, ocasionando uma vertiginosa decadência dos valores morais dos quais tanto se orgulhava o povo americano. Não bastando os problemas econômicos, a sociedade estava em meio a um conflito de gêneros. As mulheres passaram a exercer funções antes realizadas exclusivamente por homens para suprir a falta de mão-de-obra ocasionada pelo início da guerra, e os veteranos, ao voltar para o seu país, encontraram um novo panorama social: mulheres agora possuíam independência financeira e continuavam a ampliar seus horizontes, “roubando” uma parte do espaço e da identidade masculina. Sendo assim, em nenhum outro momento histórico poderia ter surgido um herói (ou anti-herói) tão cínico e pessimista, nem a figura da femme fatale, já que constituíam uma crítica a situação caótica dos Estados Unidos dos anos 30.
No caso de O Falcão Maltês, esta crítica à sociedade ainda aparece muito sutil, para não dizer tímida. A primeira femme fatale do cinema também surge acanhada, mas isto já foi o suficiente para romper com a imagem da mulher ingênua e submissa promovida pelos filmes westerns e conferir um lugar de maior destaque a personagens femininas mais ousadas e interessantes. O protagonista, em compensação, não deixa nada a desejar: Humphrey Bogart retrata com perfeição todas as características do herói noir: Spade é ambíguo, pessimista e egocêntrico.
Apesar do desfecho do filme não ser tão surpreendente, nada deixa a desejar. O detetive consegue solucionar o crime, o que é demonstrado através de um invejável raciocínio, que, de tão sistemático, chega a nos lembrar o método hipotético-dedutivo; e providencia uma forma para que todos os envolvidos no crime sejam punidos, inclusive a Miss O’Shaughnessy, por quem nutriu uma espécie de afeto ao longo da investigação.
O Falcão Maltês é um filme indispensável para a compreensão do fenômeno noir não só por sustentar o título de marco inaugural, mas por ser considerado um dos melhores exemplares do gênero. Ah!, quanto à discussão se o noir pode ou não ser considerado um gênero, isto fica para uma outra ocasião...
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bem fílmica essa resenha, Rebeca!
ResponderExcluirGostei bastante!
Obrigada, Ângela.
ResponderExcluirApenas tentando seguir os seus conselhos...
Descobri esa resenha através do google e ela é absurdamente perfeita!!!
ResponderExcluirparabéns por contextualizar o filme noir com o "Falcão Maltês". Parabéns Rebeca
Danilo, só agora vi teu comentário! Agradeço sinceramente pelas congratulações, apesar de ter relido o texto e percebido que precisa de muitos ajustes. Enfim, foi realmente um prazer ter feito essa resenha, pois ela me permitiu investigar mais de perto uma parte da história do cinema (e dos Estados Unidos) que sempre achei interessante.
ResponderExcluirAbraço.