sexta-feira, 24 de junho de 2011
“A Paixão de Joana D’Arc” de Carl T. Dreyer, por Pedro Queiroz
Devido ao seu aspecto extremamente polêmico e crítico, tanto em relação à negligencia e ambigüidade da igreja, quanto à visão equivocada do próprio Estado Francês, o talvez mais conhecido filme de Carl Theodor Dreyer, A Paixão de Joana D’Arc (1928), foi não só proibido de ser distribuído e exibido, como teve seu negativo e as cópias de que se tinham notícia, queimadas. Dessa forma, durante mais de cinqüenta anos, não houve acesso à obra original, ou pelo menos a uma cópia parecida com isso. Até que milagrosamente, em 1981, uma cópia Dinamarquesa, muito fiel à primeira edição do filme, foi encontrada num hospício na Noruega. O filme conhecido pela grande maioria das pessoas – inclusive lançada pela coleção Criterion – é uma adapatção da Cinematèque Française dessa cópia. A trilha sonora oficial do filme não existe, tendo sido tocadas várias peças musicais durante sua apresentação ao longo das décadas. É sugerido pela própria Cinematèque, que seja executado em conjunto a peça Voices of Light, de Richard Einhorn, que se inspirou tanto na vida da heroína, quanto na visão de Dreyer acerca dela, para compô-la.
Confesso que não tive o interesse de procurar a música e ouvir enquanto assistia ao filme, mas felizmente não me arrependi: o filme não mostrou a mínima necessidade de uma trilha de fundo. Pelo contrário, a falta de música me deu a impressão de uma mensagem muito mais bem passada. Dizem que o silêncio foi um recurso apenas alcançado com o advento do cinema sonoro, uma vez que a ausência de som seria uma opção dos realizadores para configurar uma atmosfera mais densa, melancólica, bergmaniana avant la lettre, diria eu. Pois então, a falta de trilha sonora caiu com uma luva nesse filme, cuja tensão é levada ao máximo a todo momento.
O famoso tédio causado pela ausência de trilha em filmes mudos é mais facilmente sobrepujado aqui, graças a um aspecto levado muito a sério no filme: a montagem. De forma muito interessante, ela consegue – apesar do empecilho triste dos letreiros, que cortam a continuidade das atuações; e da falta de fala, que pode acabar retirando parte da possível dramaticidade de um filme – manter um diálogo rápido e relativamente complexo entre os personagens, contando com a ajuda constante do plano e contra-plano.
No entanto, essa agilidade nos diálogos não retira a densidade a qual me referi anteriormente. Os movimentos de câmera são utilizados no filme com maestria para justamente reforçar esse aspecto. É notável a facilidade do cineasta em lidar com a câmera, utilizando-a para causar emoções e sensações.
Uma cena interessantíssima é a em que um dos padres toma uma decisão com importância grande no destino de Joana, e conta ao padre ao seu lado. O segredo é passado de padre para padre, e a câmera acompanha em travelling esse ‘telefone-sem-fio’, como se fosse ela própria o segredo sendo disseminado pela sala.
A tirania e soberba dos padres são ressaltadas pelo contra-plongé; o drama sofrido pela protagonista é acentuado pelos close-ups em seus olhos esbugalhados, desesperados e súplices. O close, aliás, é uma grande marca registrada do filme, que não contém sequer um stablishing shot. Isto, é claro, causa uma confusão do espectador, que acostumado a ser sempre bem situado acerca do ambiente em que se desenrola a ação, pode sentir-se desnorteado e apresentar certa dificuldade em compreender o todo. Quando temos uma noção mais ampla da cena, um plano médio, o espaço ocupado pela atriz é sempre insignificante, perto da altura e posição privilegiada dos seus condenadores.
O cenário do filme – que, por sinal, ainda existe em Copenhagen, e vale muito a pena ser visitado, inclusive para ter-se uma idéia desse todo – nunca aparece inteiro, e nunca deixa clara a real distância entre os objetos: uma janela é muito alta, ou não há uma clareza precisa acerca da disposição das cadeiras, e da quantidade de pessoas no recinto.
O contexto do filme é desnorteante por si só. Em nenhum momento, temos uma noção maior do que está acontecendo, do que a própria Joana d’Arc. A situação história, e os precedentes da guerreira não são mostrados ou explicados. No máximo, são citadas referências pelos padres. Não há aqui, portanto, preocupação com uma abordagem de Joana como uma heroína, ou guerreira. Aqui é explorado o aspecto humano da mesma, é buscada uma aproximação do real. Mostra-se, então, uma Joana comum, de aparência masculinizada, e nenhum glamour. Não uma guerreira destemida, mas uma garota de 17 anos que acredita estar fazendo um bem para seu país, uma missão para seu Deus, e vê-se encurralada, ao ser questionada acerca do seu modo de vestir, agir, e pensar. A interpretação de Maria Falconetti é emblemática, sendo não raramente eleita uma das melhores do cinema mudo.
O roteiro original do filme, por sinal, trazia uma abordagem mais, digamos, piegas, apelativa da história da guerreira. Dreyer achou mais interessante, porém, fazer outro a partir dos documentos históricos acerca do julgamento e condenação da mesma. Ironicamente, esses registros foram feitos pelos mesmos padres que a condenaram, justamente como uma tentativa de execrá-la da estória. A tentativa foi mal sucedida, posto que Joana D’Arc seja uma santa, mártir, e exemplo histórico de mulher e cidadã nos dias de hoje.
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Excelente apreensão do filme. O assisti em dvd pela Magnus Opus, e a música erdita que o acompanha dá uma dimensão espiritual - com cores de vozes, órgão, etc - que enfatza o drama humano de Joana. Após ver o filme, busquei adquirir a 'trilha sonora'', que é, até independentemente do filme, de uma intensidade profunda.
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