terça-feira, 5 de maio de 2009

"Relíquia macabra/O Falcão Maltês" por Henrique Vieira


Anos 40. É fim de tarde. Uma sala mal iluminada num pequeno prédio em San Francisco abriga dois escritórios. Ambos ligeiramente bagunçados, cada um com um telefone escuro e diversos papéis jogados. Atrás de um deles, a figura mítica de Humphrey Bogart, cabelo engomado e terno ajustado, prepara um cigarro. Uma secretária entra.

Sem dar-se a pena de olhá-la, o galã indaga “sim, querida?”
“Uma senhora está aqui para você. O senhor vai querer vê-la: ela é linda!”
Com um pequeno sorriso sarcástico ele diz: “Claro, então… Deixe-a entrar, deixe-a entrar…”

***

É de detetive “canastrão” que Humphrey Bogart estrela o filme “Relíquia Macabra”. Não seria nada demais, visto que este tipo foi tão recorrentemente usado no cinema-noir americano, não fosse o fato de apontarem “Relíquia Macabra” como o primeiríssimo filme noir da história. Contemporâneo de filmes clássicos como “…E o vento levou” e “Casablanca”, “Relíquia Macabra” é o primeiro filme que vai reunir os elementos comuns ao que ficou conhecido posteriormente como filme ‘noir’.

A história se passa nos anos 40 em San Francisco. Um detetive particular, Sam Spade (Humphrey Bogart), recebe uma mulher que o contrata para encontrar sua irmã desaparecida. Rapidamente, Sam perceberá que a mulher mentiu para ele, que não há nenhuma irmã e que o caso envolve muito mais coisas e pessoas. É que diversas pessoas estão atrás de um misterioso ‘falcão negro’, relíquia dos cruzados que estaria repleta de jóias, e estão dispostas a tudo para conseguí-lo. Sam vai se ver envolvido nessa trama e terá que se safar das acusações de assassinato que lhe foram feitas.

Todos os ingredientes do noir estão presentes no filme: O herói é um detetive particular cínico, ‘canastrão’, bom apreciador da companhia feminina mas que no final das contas não luta pela mocinha, colocando o dinheiro à frente de seus interesses. A protagonista não pode ser considerada ‘mocinha’: ela é dissimulada, mente para conseguir o que quer, está longe de ser ‘inocente’ - o que ela mesmo confessa no filme. A trama vai se desenrolando numa verdadeira ‘corrida aos mistérios’, cada mistério levando ao outro, numa narrativa que, apesar de misteriosa, se mostra finalmente bastante linear. Podemos perceber o quanto a narrativa privilegia o herói, deixando-o em situações bastante confortáveis como por exemplo quando o falcão negro aparece praticamente ‘de graça’ em suas mãos o que lhe dá um grande poder de barganha com o resto dos personagens. Ou ainda em coisas menores como a certa falta de competência do capanga do inimigo que permite a Sam de sempre controlar a situação no final das contas. Mas estas coisas ficam por conta da licença poética.

O que pode ser interessante observar neste filme-ícone do cinema noir, de mais de 60 anos – e que praticamente introduziu os conceitos conhecidos no cinema noir – são as diferenças conceituais de época. Quanto à femme fatale, por exemplo, além da óbvia diferença entre os padrões de beleza e de sensualidade entre a época do filme e a de hoje, o seu ‘desvio de caráter’ é muito mais ameno do que já se fez comum retratar em filmes hoje em dia. O que quero dizer é que já se representaram, no cinema, mulheres muito mais sem caráter, ambiciosas, e dissimuladas do nesse filme. Ou seja: para o conceito de femme fatale que ele mesmo introduziu, o filme se vê ultrapassado pelo seu tempo. Isto pode ser verificado também quanto à ingenüidade dos vilões. Por mais que seja o filme noir que tenha introduzido a idéia do personagem ‘mafiosos’, inescrupuloso, que comete crimes e corrupção, a forma de se desenvolver personagens parecidos nos dias de hoje é muito mais carregada de realidade do que nos primórdios do filme noir. Tomando como exemplo a ‘Relíquia Macabra’, os vilões são por demais ‘ingênuos’ se comparados com a realidade. E, no entanto, foram eles que, primeiros, introduziram esses tipos no cinema americano.

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