sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Regra do Jogo (La règle du jeu), 1939, de Jean Renoir, por Débora Bittencourt


“O que é natural nos dias de hoje?” Citada por Christine ao se referir à mera cor de um batom, essa e tantas outras frases compõem diálogos ricos em um humor irônico que é marca central do filme. É assim, sarcasticamente, que, setenta e dois anos depois, ao assistirmos a “A regra do Jogo”, não podemos deixar de nos sentir provocados. Em uma intrincada história de amores e traições, o filme traz à tona a decadência das relações pessoais em um mundo onde impera o tédio e a mentira.

Os sentimentos e inquietações são os mesmos que regem patrões e empregados que se encontram na mansão de veraneio de Robert de La Chasney, marido de Christine, onde convidam amigos para uma temporada de divertimento. A diferença se dá nas válvulas de escape dos diferentes grupos. Enquanto Lisette, parece satisfeita em meio ao dislumbre da riqueza de sua patroa Christine e em furtivos casos, La Chasney e seus amigos estão mais preocupados com seus problemas pessoais. Aliás, parecem não pensar em nada além de seus pequenos dramas e dos outros, apesar de tratá-los com uma aparente indiferença, como cita Geneviève, amante de La Chasney, num tom bem humorado: “O amor na sociedade é a troca de duas fantasias e o contato de duas epidermes.”

Os homens agem mais inocentemente, fazendo o que lhes dá na telha, às vezes até com ressentimento por magoar um próximo, enquanto os personagens femininos são mais mentirosos, manipulando as situações a seu favor, como faz Christine ao aliar-se à Geneviève afim de que seu marido a deixe um pouco de lado. Ao mesmo tempo parecem extremamente desprotegidas, dependentes dos homens. Talvez hoje esse estereótipo da mulher maliciosa e frágil seja comum e até um pouco ultrapassado, mas essa ambigüidade, presente em quase todos os personagens traz algo novo para época e interessante até hoje: não há mocinhas, vilões, não há heróis nesse filme. Essa é mais uma característica do realismo que vinha surgindo nesse momento, denominado por alguns teóricos como realismo poético, como explica Ismail Xavier:

“O novo estilo é extremamente “democrático”, dando liberdade de escolha ao espectador e formulando um convite à sua participação ativa, dado que de sua vontade depende o fato da imagem ter um sentido. Da parte do diretor, tal estilo testemunha uma elogiável humildade, dado que o respeito à liberdade do espectador articula-se com a renúncia do sujeito a “subjetivar” a realidade (impondo um significado às coisas) e sua alta compreensão do que é “objetividade” que no fundo consiste no respeito à ambigüidade imanente do real.”

Há cenas um pouco burlescas, como a perseguição entre empregados que os convidados acreditam ser mais um número teatral (mais uma vez a confusão pela traição de uma mulher) onde apesar de usar de um humor quase paspalhão, é explicitada essa “ambiguidade imanente do real”. Quando Jurieu, o único que parece jogar com sinceridade morre assassinado, todos sabem lidar com a situação com muita elegância, supondo um acidente. E assim deve ser: mesmo que todos saibam a verdade, não custa fingir acreditar em uma mentira, afinal, como diz Christine: “Pessoas sinceras são tão enfadonhas!”

Nas cenas iniciais Jurieu, que expõe seus sentimentos à imprensa (sendo admoestado por isso) se encontra num local demasiado escuro. Em sequência, o restante dos personagens, que vivem de certa forma ocultos por seus segredos, lhe escuta em ambientes muito claros. Esse é talvez o primeiro choque do filme, repleto de paradoxos e associações, de verdades e mentiras, de teatro e realidade, de brincadeiras e conflitos. Renoir afirmou ter o propósito de relatar com fidelidade a sociedade da sua época. Talvez ele não soubesse, mas “A Regra do Jogo”, nos convida a pensar não só o contexto parisiense dos anos pré-guerra, como nos traz impasses inegavelmente contemporâneos situados na insatisfação humana, nas tentativas de saciedade, no desespero que o tédio acaba gerando, situações belissimamente expressas pelos contrastes marcantes do filme.

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