sexta-feira, 24 de junho de 2011

O espelho de três faces – Jean Epstein, por Túlio Rodrigues


Com o fim da primeira guerra mundial e a partir de Louis Delluc (crítico e escritor) se inicia na França uma nova vanguarda: o impressionismo francês. Ligado a tal movimento, o poeta e cineasta Jean Epstein se torna um dos grandes nomes do cinema francês na época. Absorvido no ‘avant la lettre’ ou seja, um “cinema de autor”, em 1927, Epstein faz o filme mais inovador em relação a narrativa de todo esse período: ‘O espelho de três faces’ baseado no romance de Paul Morand.

O filme retrata três mulheres e a relação de cada com o personagem principal, o ‘homem’(René Ferté). Dividido em quatro partes, Epstein surpreendentemente quebra a narrativa do seu filme ao fazer com que as mulheres abordem sua relação com o ‘homem’ a partir de lembranças. É assim que todo o filme é construído, a partir de uma bela montagem paralela entre os momentos das mulheres com o ‘homem’ e suas recordações deles. Tal narrativa não-linear e até mesmo não cronológica só fez do filme uma obra-prima extremamente pensada e bem executada, a meu ver, tal ruptura deixou o filme ainda mais perto do espectador, podemos sentir aquelas lembranças e por alguns instantes, somos nós os verdadeiros interlocutores daquelas mulheres.

Na primeira parte, a história é de Pearl (Olga Day). É o ato mais confuso no filme, não fica claro exatamente onde ela conheceu o ‘homem’ e que tipo de relação eles tinham, mas fica evidente que ele não lhe dá toda a atenção devida. Os grandes destaques nesse primeiro momento são para as cenas iniciais em que Pearl ver o ‘homem’ na figura de outros homens ao seu redor, evidenciando a confusão que a personagem está sofrendo naquele momento. Tal recurso vai ser utilizado em tantos outros filmes, inclusive contemporâneos, com finalidade de mostrar um sentimento de tensão ou de saudade. Destaque também para a cena filmada dentro do elevador e para a descida de carro do prédio com arquitetura em espiral logo depois que o protagonista acaba seu relacionamento com Pearl. Nessa última fica evidente a relação que Epstein cria entre o sentido da imagem (de queda, tontura) e a narrativa (o fim do relacionamento).

Em seguida, é contada a história da escultora Athalia (Suzy Pierson). Nesse segundo momento as lembranças se tornam mais claras para o expectador. Quando Epstein intercala os planos das recordações com um close-up no rosto de Athalia, fica evidente que está ocorrendo um momento de paralelismo, uma cena está narrando a outra. Os destaques para essa parte se dão quando a escultora conhece o ‘homem’ no bosque. O travelling que é feito com a mulher perseguindo seu bichinho de estimação e em sequência do ‘homem’ montado no cavalo são de chamar a atenção devido ao cuidado em fazer esse plano em movimento: não há quebra de eixo ou tremulações; a música se tornando mais agitada na passagem do plano de Athalia para a do ‘homem’; além de close-up quase frontal do ‘homem’ em seu cavalo, tais detalhes só comprovam o cuidado com planos e enquadramentos que a vanguarda francesa buscava na época. No final da segunda parte, o ‘homem’ descarta a escultora dando início ao terceiro e melhor momento do filme.

Lucie (Jeanne Helbling) é a última mulher a ser apresentada na narrativa. A sua simplicidade já é o primeiro obstáculo na relação dos dois. Meu primeiro contentamento nessa parte se dá logo no início em que Epstein com cortes mais rápidos, faz uma montagem realmente incrível numa sequência de trás para frente, em que vemos o que aconteceu em uma noite entre Lucie e o ‘homem’ de uma maneira bastante original. Tal originalidade, aliás, me parece ser, sem dúvidas, a característica predominante de todo o filme. Nesse terceiro momento, mais destaques podem ser identificados: o super close-up na mão de Lucie, evidenciando sua “pobreza”; o belíssimo giro de 360° feito na cena rio; e os olhares entre o ‘homem’ e Lucie quando ela tenta consertar sua falta de refinamento pegando uma xícara observada com um ar de reprovação do seu acompanhante.

Na última parte do filme, o ‘homem’ protagoniza sozinho. Ele escreve uma carta para Lucie querendo vê-la. A partir daí a subjetividade do impressionismo francês pode ser observada ao ser mostrado pássaros que se encontram, retomando a ideia de casal. No final, Epstein nos banha com a melhor sequência do filme. Desde quando o personagem principal começa a dirigir seu carro em alta velocidade e em cortes rápidos podemos ver placas de atenção e perigo intercaladas com ângulos frontais e superiores do ‘homem’, além de uma música que obedece a tal ritmo acelerado, nos fazem levar ao ponto máximo de tensão: a morte do protagonista que é reforçada pela imagem estática dele morto sobreposta a outra imagem em movimento indo em direção ao céu. Nessa cena fica evidente a relação minuciosa que o cineasta francês trás em todo o filme, da narrativa conversando com a imagem e vice-versa.

Assim, a película acaba, mas a inovação e sua liberdade de experimentação com certeza ficam. Jean Epstein me surpreendeu ao fragmentar sua narrativa, o filme não apresenta certa linearidade, não podemos afirmar se cada relato aconteceu naquela ordem, ou seja, ele também quebra com a cronologia do filme. Mesmo assim, ele conseguiu passar com clareza o seu enredo inclusive sem uso de tantos letreiros, conseguindo um ponto de sintonia entre imagem e narrativa. Isso é o que deixa o cinema de Epstein ainda mais excitante de ser visto, analisado e seguido.

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