sexta-feira, 24 de junho de 2011

"Gilda", por Maria Gabriela de Miranda Costa


Ao escolher o noir “Gilda”, já por seu nome ser também o da protagonista do filme, imaginei uma obra centrada em uma típica femme fatale. Esse estereótipo de mulher 'redentora' é o elemento mais forte e subversivo desse movimento e tem como características o fato de nunca falar de si, pois são misteriosas, e de não se prender a sentimentos e valores para atingir seus objetivos, os quais geralmente se convertem em uma busca insaciável, e sem limites, por prazer, dinheiro e liberdade. Nesse contexto, Gilda (Rita Hayworth) surpreende, pois surge como uma femme fatale mais humanizada; atraente, mas não perversa.

O filme me deixou a sensação de estar vendo uma história de amor num universo claramente noir, tanto no enredo como na técnica. Gilda usa de traição e sexualidade para conseguir o que quer, que, na verdade, é causar ciúmes e chamar a atenção de Johnny Farrell (Glenn Ford), amigo de seu marido Ballin Mudson (George Macready), que é dono de um cassino. Gilda e Johnny haviam sido amantes e separaram-se por razões nunca explicadas, bem como não se explica o ódio que sentem um pelo outro, o qual se converte, muitas vezes, em uma forte atração.

Gilda, ao mesmo tempo que declara: “se eu fosse uma fazenda, não teria cercas”, demonstrando a sua sede de liberdade; ela chega ao ponto de se declarar para Johnny, dizendo que o ama. Ela não é o tipo de femme fatale que anda com armas ou é capaz de cometer assassinato, como Diane, personagem de Jean Simmons no também noir “Angel Face”; no máximo um strip-tease cantando “Put the blame on mame”. Talvez então, não só por sua beleza e seus belos vestidos, mas também por seu lado livre e humano, é que todas as mulheres da época queriam se parecer com Gilda.

No entanto, sua força, sensualidade e segurança plena, eram ousados demais para a censura dos anos 40; a sociedade patriarcal da época pregava que a mulher só seria completamente feliz se estivesse sob a tutela de um marido e com filhos, e qualquer conduta ameaçadora a essas regras deveria ser punida. Gilda fuma, bebe, trai, se veste como quer, é debochada, irônica, atrevida, manipuladora e sensual demais; esses são seus 'crimes', e por eles é, de certa forma, punida. Ao se casar com Johnny Farrell, o homem que ama, ele a abandona como uma forma de vingança por algo que nós, espectadores, não sabemos o que é. Ela, então, desiludida, resolve sair do país, buscar uma vida nova, conhecer outras pessoas; mas é sempre perseguida por Johnny, o qual não quer que ela saia de suas amarras. Isso é castigo demais para Gilda, pois ela sempre foi uma mulher livre e passa a ser controlada e perseguida em qualquer lugar que vai, como uma criminosa. Fiquei me perguntando porque aquelas coisas estavam acontecendo (ela chega ao cúmulo de chorar e implorar para que ele a deixe em paz), e tive a resposta ao ver que o filme é de 1946.

Constatei, então, que a figura da femme fatale em alguns filmes noir, ao invés de ser subversivo, de questionamento das opressões do universo masculino, é, na verdade, uma 'fórmula' de como as mulheres da época não deveriam se comportar.

No mais, o filme cria uma atmosfera quase claustrofóbica, pois a maioria das cenas são em estúdio, e as poucas externas são à noite, em ruas escuras e desertas; além da fotografia extremamente contrastada, da iluminação low-key, com grande quantidade de sombras (como na cena em que Mudson ao perceber o envolvimento de sua mulher, Gilda, com Johnny, por vê-los chegando juntos, é totalmente encoberto por uma sombra) e de motivos iconográficos tipicamente noir, como a escada da casa de Ballin Mudson, a simbólica janela do cassino e os relógios, por exemplo. Isso sem falar do clima de sensualidade que permeia todos os segundos em que Rita Hayworth está em quadro; seja através de suas frases de duplo sentido, de suas luvas, do colo quase sempre nu, do jeito único de jogar os cabelos, além do inesquecível vestido preto de cetim.

Por fim, Gilda é uma personagem realmente inspiradora justamente por não ser uma típica femme fatale e por roubar a cena; esquecemos dos crimes, da ilegalidade do dinheiro dos cassinos, da narração em over de Johnny, que deveria ser o herói da história e é, na verdade, um solitário. Esquecemos do pessimismo característico dos noir e da representação da mulher nesse movimento. Só temos olhos para Gilda. Ah, e ela termina com Johnny Farrell, mas não sei bem se isso pode-se considerar um final feliz.

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