quinta-feira, 7 de maio de 2009

"Realismo poético? Uma poesia" por Camila Nascimento Martins



“Um excesso de infância é um germe de poema”
Gaston Bachelard

Ao assistir Zero de Conduta (Jean Vigo, 1933) tive a mesma sensação de suspensão no tempo que sou acometida quando me chegam novos poemas. Os poemas que me agradam, naturalmente. O filme me emocionou deveras e gradativamente. Foi uma descoberta cinematográfica: a denúncia de uma dura realidade, pero sin perder la ternura jamas. Clichês à parte, eu nunca havia visto nada parecido. O tom de uma leveza infantil equilibra a narrativa de sofrimento tão pesado vivido pelas crianças no internato como o que o próprio cineasta passara sua infância.

Vigo remete-se a este período de sua vida e nos poetiza suas adultas impressões. Bachelard em seu “Devaneio Poético” defende a permanência, na alma humana, de um núcleo de infância, uma infância imóvel, mas sempre viva, fora da história, oculta para os outros, disfarçada em história quando a contamos, mas que só tem um ser real nos seus instantes de iluminação – ou seja, nos instantes de sua existência poética. O filme é o poema de um adulto que revisitou sua criança.

As elipses, as lacunas, os silêncios, a solidão conseguem revestir os sintéticos 40 minutos de filme de um ritmo poético onde há espaço para as devidas interpretações e sensações. A única liberdade possível àquelas crianças era o sonho, o devaneio. Como ser criança e viver em condições de cárcere sem recorrer à ilusão, à imaginação? Com mágica e com palhaço, resolve Vigo. Mas num levante onírico (cena das mais belas que eu já vi), elas se rebelam e concretizam suas ânsias de liberdade sonhadora de cima do telhado com livros velhos e botas sujas enquanto armas. Belo equilíbrio.

O filme fora censurado à época e talvez tenha entrado num estágio de latência, no sentido de que seu efeito histórico fora sufocado na ocasião de seu lançamento deixando seu germe de poema se desenvolver na posteridade, no eterno hoje das nossas infâncias em potencial.

Emoção e intriga: realismo poético? Sim. Vigo nos faz a leitura meiga de uma realidade árdua. Acidez e doçura nas devidas dosagens. Uma poesia.

2 comentários:

  1. poxa, camila, que texto bonito. tá quase uma poesia, mesmo!

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  2. Texto bem escrito!!

    Veja também:

    http://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/

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