sexta-feira, 3 de abril de 2009

"O Gabinete do Doutor Caligari – A chegada do expressionismo na Alemanha" por Tiago Bacelar


Os primeiros longas-metragens alemães foram baseados em livros literários, por isso, eram considerados como artísticos. Eles surgiram no começo dos anos 10 e teve como auge a adaptação em 1913, da obra O Estudante de Praga, de Edgar Allen Poe, dirigida por Stellan Centeio, com fotografia de Guido Seeber e interpretado pelos atores da companhia de Max Reinhardt.


Apesar disso, antes de 1914, muitos filmes estrangeiros foram importados. Como estávamos na era do cinema mudo, não havia barreiras com outras línguas e nesse período as produções dinamarquesas e italianas eram particularmente populares na Alemanha. O desejo do público de assistir filmes com determinados atores fez surgir as primeiras estrelas do cinema alemão. Uma das atrizes pioneiras foi Henny Porten.


A maneira que o cinema foi se popularizando, os alemães começaram a se interessar especialmente por histórias de mistério, característica marcante da grande maioria dos filmes expressionistas, os quais surgiriam no final dos anos 10 com O Gabinete do Doutor Caligari. A chegada da Primeira Guerra Mundial espalhou a destruição na Europa e o boicote na Alemanha a filmes estrangeiros, especialmente os franceses. Esse movimento deixou uma abertura visível no mercado.


Em 1916, existiam cerca de duas mil vagas disponíveis para seleção e posterior atuação em filmes alemães. Em meio a essa carência em termos de produção cinematográfica, começou em 1917, um processo da concentração e a nacionalização parcial da indústria alemã, e em meio a isso surgiu a UFA, inicialmente com a finalidade de produzir filmes propagandistas e de guerra.
Apesar disso, o público alemão não se importou em engolir a medicina patriótica em o açúcar de filmes de entretenimento, produzidos também pela UFA. A proposta deu certo e a UFA levou a indústria cinematográfica na época a maior de toda a Europa, destroçada pelos horrores da Primeira Guerra Mundial.


Assim, levadas pelas estratégias da UFA, a Alemanha viveu no período de 1918 a 1933 o cinema na República de Weimar. No período imediatamente depois da guerra, os filmes serviram como escape da população aos trágicos cenários de destruição vividos pela Alemanha. O crescimento da indústria cinematográfica alemã nesse período foi ajudado pelos altos índices de inflação no final dos anos 10 e início dos anos 20. Os produtores de filmes tiveram que pedir dinheiro em notas promissórias, bastante desvalorizadas na época, e foram depois forçados a pedir reembolsos pelos prejuízos causados com a produção delas.


Não bastasse os apertados orçamentos de produção, a necessidade de juntar dinheiro foi um fator importante para à ascensão do Expressionismo, pelo desejo de todos de mover para frente o cinema alemão e levar um futuro diferente da destruição que varreu a maioria de Europa naquele tempo. Os filmes do Expressionismo confiaram pesadamente no simbolismo e na imagem artística, deixando de lado o realismo da vida real, para contar as suas histórias. Em plena época dos filmes mudos, o mundo já conhecia nomes como os irmãos Lumiere, Griffith e Orson Welles e movimentos como a Escola Clássica Americana e o cinema soviético de Sergei Eisenstein.


Após passar por seus primeiros momentos, o cinema descobre as técnicas de estúdio, os segredos do uso da câmera e uma nova possibilidade de interpretação dos atores, carregados de maquiagem e dramaticidade em cena. Tudo isso começou a nascer na Alemanha, destroçada pela Primeira Guerra Mundial, com um movimento que mexeu com diversas áreas culturais chamado de Expressionismo.


A emergência do cinema alemão após a I Guerra Mundial foi marcada por outro filme, o Gabinete do Doutor Caligari. Macabro, sinistro e mórbido eram os adjetivos preferidos para descrever os filmes alemães. Um das principais virtudes dos diretores dessas produções foi o domínio por completo do estúdio. Uma disciplina coletiva das equipes de produção foi fundamental para a unidade da narrativa como também a perfeita integração de luzes, cenários e atores.


Durante a República de Weimar e durante a Segunda Guerra Mundial, a UFA foi a casa da indústria cinematográfica alemã no período de 1917 a 1945. Esta companhia nasceu, numa união da Decla e Nordisk, em 18 de dezembro de 1917, em Berlim, como um órgão ligado ao governo para produzir filmes propagandistas durante a Primeira Guerra Mundial. O proprietário da Decla, Erich Pommer, virou produtor do primeiro filme de sucesso comercial da UFA, o Gabinete do Doutor Caligari.


Com o sucesso desta produção, a UFA abriu em 1920 o UFA-Palast am Zoo Theatre, em Berlim. Nos anos do cinema mudo, quando os filmes eram facilmente adaptados para outros países, a UFA conseguiu desenvolver uma reputação internacional a altura de competir com os filmes de Hollywood. Fez grandes produções como Metropolis e Doutor Mabuse, de Fritz Lang, e O Anjo Azul, com Marlene Dietrich. Além dos filmes comerciais, a UFA aderiu ao experimentalismo das ruas do avant-garde e do bergfilm, este último um gênero genuinamente alemão que glorificava e romantizava histórias de escaladas de montanhas, de esquiagens em épocas de neve e muitas cenas de ação com avalanches de neve.


Antes da guerra, o caminho em direção à formação estética do cinema alemão estava sendo apoiado pelo expressionismo na literatura e nas artes pelos pintores das obras The Bridge, em Dresden, Blue Rider em Munique, e Metropolis de George Grosz em Berlim. O expressionismo na arte e na literatura foi seguido pelo teatro e pela arquitetura, que no início se restringia apenas a desenhos.


E em seguida veio o cinema. Metropolis foi o último filme expressionista e Caligari o primeiro. O Gabinete do Doutor Caligari é acima de tudo, resultado dos pintores Hermann Warm, Walter Reinmann e Walter Röhrig, dos escritores Carl Mayer e Hans Janowitz e dos atores Werner Krauss e Conrad Veidt.


A história de um jovem sonâmbulo (Conrad Veidt) utilizado para cometer assassinatos a mando de outra pessoa refletia o envio então recente de soldados às trincheiras da Primeira Guerra por autoridades militares. No filme, Wiene retrata o sentimento de dor e descrença da sociedade alemã por meio uma metáfora eficiente, lúgubre e cujo significado permanece até os dias de hoje.

Em seu livro From Caligari to Hitler, o autor Siegfried Kracauer aponta que:

"Caligari não deixa de ser um tirano enlouquecido pelo poder apenas porque é visto como tal por um insano. A criação desta atmosfera de pesadelo jamais teria sido possível, contudo, sem o suporte decisivo de uma bem resolvida concepção estética expressionista. Em Caligari, a cenografia expressionista conseguiu evocar a fisionomia latente de uma pequena aldeia medieval, com ruelas tortuosas e escuras, passagens estreitas espremidas entre casas arruinadas. Essas imagens expressionistas representam uma construção mental que nega a realidade objetiva. A visão de perspectivas falseadas e imprevisíveis, de formas distorcidas, e a consciente intenção de evitar linhas verticais e horizontais, despertam no espectador os sentimentos de insegurança, inquietação e desconforto. Os figurinos usados pelos atores, os móveis e os demais objetos cênicos se incorporam fielmente a esta concepção."


Nascido em 24 de abril de 1873, em Breslau, na Alemanha, Robert Wiene, antes de chegar ao cinema em 1914, foi ator e diretor teatral da companhia Berlin Theater. Sua filmografia antes de 1919 pode ser desprezada sem remorsos, incluindo os filmes que dirigiu o grande ator Emmil Jannings. Em 1919 se tornaria então uma referência que mudaria o rumo do cinema no que se diz respeito à concepção visual, interpretação e ao gênero fantástico.


O Gabinete do Doutor Caligari foi uma espécie de anti-manifesto do expressionismo alemão. Em 1924, Robert Wiene produziu As Mãos de Orlac. Quando veio o nazismo, ficou até com intenção de dirigir e escrever na Alemanha, mas a causa da sua glória com o Gabinete do Doutor Caligari, foi também a causa dos seus males. O filme cheirava tanto a judeu que Hitler e seus comandados passaram a persegui-lo.


Acabou sendo obrigado a se exilar em Paris, onde morreu em 17 de julho de 1938. Não terminou seu último filme, Ultimatum, finalizado por Robert Siodmark 10 dias depois de sua morte de câncer. Mesmo sendo considerado por muitos críticos como um cineasta de segunda categoria, Robert Wiene ficou imortalizado por ter criado um dos filmes mais influentes da história do cinema.


Em O Gabinete do Doutor Caligari, Robet Wiene pintou um retrato na tela do cinema com os jogos selvagens, não realísticos construídos com geometria exagerada, imagens pintadas nos assoalhos e nas paredes para representar objetos, especialmente luz e sombra, e uma história que envolve as alucinações de um homem insano. Outros trabalhos notáveis do Expressionismo são Nosferatu de Friedrich Wilhelm Murnau (1922) e o Golem de Paul Wegener.


Essa inovação extraordinária, em termos de interpretação dos atores, pode ser vista com muito mais força no Gabinete do Doutor Caligari, como atesta Antunes Filho, produtor teatral brasileiro, num ensaio produzido especialmente para o DVD O Gabinete do Doutor Caligari lançado no Brasil pela Continental Home Vídeo para a coleção de filmes chamada de Expressionismo Alemão.


"Este filme de Robert Wiene influenciou o mundo inteiro, estimulando continuamente não somente o trabalho do teatro como também do ator. Perspectivas distorcidas, formas ambíguas, ângulos irregulares, traços fortes e uma consciente fuga das soluções verticais e horizontais simplistas. Ele reflete perfeitamente o universo polifônico expressivo que tanto incentivamos nos exercícios que desenvolvemos para o ator. Fenômeno único na história do cinema, Caligari transfere para a interpretação dos atores o bizarro e o árido da música, pintura, literatura e arquitetura expressionistas. Finalmente, há o alívio da ultrapassada obsessão pela recriação da realidade. Os atores podem então jogar também com os contrastes entre luz e sombra, animus e anima, consciente e inconsciente, yin e yang, ou seja, há pela primeira vez uma possibilidade dinâmica de interpretação, em contínuo movimento. A fusão entre o movimento ralentado, quase se projetando pelas paredes, de Conrad Veidt (sonâmbulo Cesare) e os passos curtos, agudos, reforçados pelo uso da bengala na agitação de Werner Krauss (Doutor Caligari). Tudo isso proporcionando fábulas fantásticas e macabras com um ponto de vista inovado e psicologicamente mórbido."


A interpretação dos atores foi essencial para tornar o Gabinete do Doutor Caligari um filme marcante, que influenciou toda uma série de produções em anos posteriores. E nesse filme, não se pode deixar de falar dos atores Conrad Veidt e Werner Krauss. O primeiro deles nasceu em 1893, em Postdam, na Alemanha, e começou sua carreira, estudando com Max Reinhardt, em Berlim, para logo brilhar nos palcos na companhia de outros grandes atores de formação teatral, como Werner Krauss, conhecido pelo papel do Doutor Caligari, e Emil Jannings.


Seu tipo físico de altura elevada e elegante ajudou-o a reforçar a personagem quase vinda de um pesadelo, um sonâmbulo de movimentos lentos e prolongados, comandados pela consciência perversa de Caligari. “Acorde, Cesare! Eu, Caligari, seu mestre, te ordeno!”. Foi com essa frase que Caligari o despertava do seu sonambulismo. Carregado de maquiagem, Veidt protagonizou no filme um show dos horrores, cheio de suspense e terror se assemelhando, no seu despertar, ao clássico Frankenstein, produzido depois de Caligari.


A partir de O Gabinete do Doutor Caligari, Veidt passou a aceitar personagens da mesma

tipologia e biótipo do seu Cesare. Conrad Veidt trabalhou também na Itália e, depois na América. Voltou para a Alemanha, onde ficou até 1930 e, em seguida, mudou para a Inglaterra, onde fez papéis que estereotipavam seus personagens mais sinistros feitos na Alemanha. Quando veio a Segunda Guerra Mundial, Veidt foi para Hollywood fazer papéis nazistas em diversos filmes e participou como o Major Heinrich Strasser no clássico da Escola Americana, Casablanca.


Morreu em 1943. Conrad Veidt veio de uma expressão talvez única e inimitável. Depois de tantas interpretações assombrosas, só podemos comparar seus personagens aos nossos piores pesadelos. Werner Krauss nasceu em Gestungshausen, Alemanha, e encontrou um lugar de destaque nos palcos de Berlim, nos meados dos anos 10. Sua vocação para encarnar papéis adequados ao espírito artístico alemão, trazido pelo expressionismo, o levou a fazer parte de um grupo que se alastrava pela pintura, música e cinema. Krauss estava encorajado a romper com o passado medíocre do cinema alemão e criar algo de novo e de vanguarda.


Krauss deu a seu Caligari um ar de mistério e peculiaridade com seus passados pausados, ajudados brilhantemente pela forma como usou uma simples bengala, seus olhos arregalados e por suas expressões corporais e faciais, prontas para praticar sua maldade, através do seu fiel soldado, o sonâmbulo Cesare. Werner Krauss permaneceu na Alemanha de Hitler, enquanto os grandes autores de sua geração se exilavam para assumir os principais papéis dos filmes nazistas.


A cumplicidade entre seus sádicos personagens do cinema expressionista com a sua carreira cooptada pelo Terceiro Reich, o colocou como um Fausto real em toda a dimensão alemã da personagem. Não podemos esquecer é claro das presenças, pequenas é verdade, mas não menos importantes de Lil Dagover no papel da garota Jane, a última vítima de Cesare no filme, de Hans Feher, como Alan, o primeiro a receber a previsão macabra do sonâmbulo, e Hans Twardowsky, interpretando Francis, o amigo de Alan.


O filme narra os acontecimentos de um misterioso reaparecimento moderno de um conto, envolvendo a estranha e misteriosa influência de um monge das montanhas sobre um sonâmbulo.


O filme basicamente conta com uma intercalação de planos entre o cenário, onde um jovem conta a um senhor a história da aparição numa feira itinerante do monge (Doutor Caligari) e o sonâmbulo Cesare e no outro a narração ganha corpo e alma. Nessas mudanças de planos, é curioso ver os efeitos com a câmera, abrindo e fechando o foco e a abertura do equipamento, mudando a toda hora o campo de visão do espectador. Todo esse truque de edição traz expectativa para quem assiste e uma sensação estranha de assombro, trevas e curiosidade de saber o que vai acontecer naquela cidade medonha chamada Holstenwall.


Os cenários da cidade foram construídos aos moldes de pinturas expressionistas e cubistas, recheados de casas e paisagens sombrias e tortuosas montadas como se estivessem em cima uma das outras, ressaltando o caos do local em que o filme de Wiene se passa. O Gabinete do Doutor Caligari é marcado também por closes e enquadramentos fechados em personagens carregados de maquiagem, emoções a flor da pele e interpretação exagerada e emotiva dos atores.


Além disso, existe a presença interessante de vários planos e ações diferentes acontecendo no mesmo quadro, em enquadramento aberto. Há uma troca freqüente de planos. Apesar dessas inovações que alcançariam seu auge com Fritz Lang em Metropolis, como o domínio da câmera e do estúdio, que começa a ser notado em O Gabinete do Doutor Caligari, ainda é notável neste filme de Wiene a presença e o posicionamento frontal da câmera.


Técnica primária e lembra de imediato a usada pelos irmãos Lumiere no início do cinema. Tomadas feitas através do vidro da janela para mostrar Caligari em seu recinto foi um prelúdio do que seria utilizado mais tarde com mais requinte, ousadia e movimento de câmera em Cidadão Kane de Orson Welles e outros filmes da Escola Clássica Americana.


A presença de sombras na escuridão, principalmente nas cenas dos crimes cometidos por Cesare, usadas em Caligari com sutileza, foi uma inovação que seria aperfeiçoada anos mais tarde nos filmes de suspense de Hitchcock. Pelas inovações que trouxe em seu Gabinete do Doutor Caligari, Robert Wiene deixou para a história um filme marcante, que mesmo com as limitações na época de sua produção, deixou abertos caminhos para o crescimento da hoje gigantesca indústria cinematográfica. E pela estética criada gerou influências no próprio cinema expressionista alemão, em outras escolas cinematográficas e em produções de culturas totalmente diferentes como é o caso dos mangás.

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