quarta-feira, 29 de abril de 2009

"Zero em Comportamento" por Douglas Deó


Um conflito entre infância e adultos – em defesa da infância: esta seria a temática central do filme de Vigo. De então, parte-se para algumas possibilidades de interpretação: além da influência da própria infância do autor (o filme serve como momento catártico para Vigo, extravasando o que marcara repressivamente sua ‘meninice’), Zéro de conduite apresenta-se como discurso libertário onde as frágeis crianças afrontam um bando de adultos repulsivos – tal discurso pode ser (e foi) visto como político a ponto de ser alvo da censura da época em que foi lançado.

A posição do autor frente a esse conflito central – a favor da infância – não fica clara apenas por informações biográficas e históricas como as citadas; se não se vê em toda a narrativa um ponto de vista infantil das situações, pelo menos a irreverência das crianças predomina na totalidade das sequências. Enquanto isso, os adultos são representados de maneira deteriorante – o diretor da escola parece ser uma criança fantasiada; o inspetor geral, além de transcorrer mudo por todo o filme, apresenta-se como personagem de moral odiosa, inclusive rouba os doces das crianças; o professor obeso escarra durante uma aula e, mesmo privando o espectador da visão desse ato, Vigo inspira o asco com o som fora do quadro. É contra esses personagens pitorescos que a infância luta.

Logo na primeira sequência encontram-se exemplos tanto das brincadeiras pueris – as penas, os balões, etc -, quanto da rebeldia de Caussat e Bruel que fumam num vagão onde se vê escrito, na parte externa: não fumantes. No instante do fumo contrapõe-se a fumaça dos cigarros à do trem, vista pela janela do vagão, como símbolo e reforço.

Chega-se à escola e ao dormitório onde não param as brincadeiras e onde identificamos a cumplicidade dos meninos: apesar de certo personagem, chamado Durand, ser chamado pelo vigilante, assumem sua posição, em tom irreverente, Caussat, Colin e Bruel; a princípio nada de excepcional em termos de linguagem cinematográfica até então, mas Colin corre ao banheiro por causa de uma dor de barriga e quando os outros dois retornam a suas camas a câmera os acompanha para em seguida buscar a cama de Colin, que ainda não retornou, e ação só se encerra quando ele volta. É no mínimo gracioso ver a câmera olhar para a cama vazia de Colin; sem palavras ela pergunta: e Colin, cadê? Paulo Emílio em seu trabalho sobre vida e obra de Vigo classifica essa ação cúmplice da câmera como o mais belo momento do filme.

Os recursos lingüísticos que comovem no filme são exatamente os que jogam com o ludismo; são simples enquanto técnica, porém marcantes como forma. O espectador sensível vai ao riso com figura de Huguet - o único adulto que comunga quase em silêncio com as crianças - quer seja quando, na estação, uma baforada e um movimento de chapéu seus são acompanhados por um som de buzina breve e cômico, quer quando ele imita Chaplin – ‘diálogo’ esse carregado de não pequena comunhão ideológica.

Nos exemplos acima, manipulando apenas o som, os movimentos de câmera e as ações dos atores, Vigo conseguiu extrapolar o realismo; aparentemente temos apenas ações diante da câmera que estão sendo captadas exatamente como ocorreram, no entanto a forma como foram trabalhadas carregou tais imagens de significados além do real aparente.

Em outros momentos Vigo apela para recursos não-reais que também servem como parte da construção do universo infantil que estava na intenção do autor – a trucagem, que vai buscar em Mélies, usada no sumiço da bola da mão de um dos alunos e a animação de Bec-de-Gaz (desenhada por um Huguet de cabeça para baixo) que toma vida e transforma-se em Napoleão.

A sequência mais marcante visualmente é a da guerra de travesseiros no dormitório quando o local é completamente revolucionado – para não dizer destruído – apesar da frustrada tentativa do vigilante em dominar as crianças. Sente-se a liberdade no ambiente fabuloso que se forma com as penas voando para todos os lados; sente-se também com a nudez do garoto que faz uma pirueta no instante em que a comitiva de todas as crianças avança em direção à câmera em câmera lenta e a música fantasmagoricamente é tocada ao inverso: de alguma forma aquele instante, artificialmente alongado fica definitivamente gravado na memória de quem o vê.

Esses meios infantis de contar a história são os instrumentos que reforçam o caminho que o roteiro segue: as crianças afrontam seus repressores e elaboram um motim a ser deflagrado no dia de certa comemoração. Tem-se o que se espera e deseja: a festa formal em que os adultos dividem lugar com uma série de bonecos inertes – como se fossem uma coisa só – e os protagonistas, Tabard, Colin, Caussat e Bruel, de cima do telhado, jogam diversos objetos sobre as autoridades. Saliente-se que, nesse instante, manifesta-se que aquela revolta não é contra apenas o mundo das pessoas grandes, mas contra a igreja (representada por um clérigo qualquer), as instituições militares (representada por um oficial) e ao próprio sistema vigente, já que a bandeira da França é trocada pela bandeira-garatuja dos revolucionários. O fim é a liberdade; os quatro rumam telhado acima, em direção ao céu.

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