sábado, 18 de abril de 2009

"O gabinete do Dr. Caligari" por Matheus Gama



“Spirits surround us on every side...
they have driven me from hearth and home,
from wife and child.”
(Homem do Jardim em O Gabinete do Dr. Caligari)



Um café no quartième e os obituários do Le Monde, caros leitores, serão, de certo, uma experiência menos assustadora do que assistir à película germânica recém-lançada pelo diretor Robert Wiene: O Gabinete do Dr. Caligari. Talvez não conformados com a derrota na Guerra que há pouco se encerrou, os alemães insistem em causar calafrios no mundo – desta vez com um filme – e, nessa investida, obtêm êxito! São 71 minutos de encontro com o não-natural, com o inesperado e com uma nova forma de se expressar cinematograficamente.


Trata a película da história de um estranho homem cuja personalidade nada remonta aos clássicos heróis: o Dr. Caligari, o qual, no início da história, chega à cidade de Hotenswall, onde se realiza uma feira de exposições. O Doutor Caligari, interpretado por Werner Krauss, anuncia, então, uma bizarra apresentação: Cesare, o sonâmbulo que de tudo sabe e que pode o futuro prever. Qualquer referência césares romanos talvez não haja sido coincidência, senão intencionalidade de Wiene. Aliás, a produção do filme, por completa, não é realizada de maneira acidental. Pelo contrário, há uma razão para cada elemento que compõe a obra (cenários, interpretações etc.).


Conrad Veidt representa o papel do personagem mais assustador da história. O sonâmbulo Cesare estaria, no dizer de Caligari, dormindo há pelo menos 23 anos. O perfil intrigante de Cesare solidifica-se ainda mais com o fato de que ele, no enredo, é uma espécie de arauto das más novas. Uma série de misteriosos crimes se sucede, sempre envolvendo as figuras dos forasteiros, após os prenúncios macabros do sonâmbulo. Neste filme de Wiene, os forasteiros trazem o infortúnio a Hotenswall. O perigo vem de fora – qualquer semelhança com o cenário do pós-guerra e das fortes imposições dos vencedores (República de Weimar) à nação alemã talvez não seja mera coincidência, igualmente.


Tecnicamente, a maquiagem dos atores é imprescindível para conferir ao filme o tom sombrio e expressionista que se pretendeu conferir à obra. Não há um personagem que não cause estranheza ao espectador, desde a jovem prometida que aparece nas primeiras cenas até os próprios Cesare e Caligari – personagens que, de certo, causaram calafrios nas platéias, por suas feições estranhas e propositadamente incomuns. Um dos personagens, o jovem Alan, inclusive, é bastante representativo para a estética que este filme expressionista quis exibir. (1)


Nesse aspecto do semblante dos personagens, fundamental destacar o trabalho realizado em todos os momentos em que, na história, se quis evidenciar em close o rosto dos personagens. Na verdade, não há closes, o que existe é um fechamento da imagem e o personagem destacado é enquadrado em um círculo, sendo diminuído o espaço de exibição da cena. É como se Wiene houvesse colocado o ponto de concentração em um dos daguerreótipos franceses, em que as bordas da imagem sempre saem escurecidas.


O que dizer da direção de arte de O Gabinete do Dr. Caligari? Peculiar. Se há poucos anos os cenários de Viagem à Lua, de George Melièrs, despertaram o imaginário do público, a pequena cidade intencionalmente distorcida em sua construção, bastante sinuosa e de ângulos irregulares não fica atrás. Por óbvio, os propósitos foram distintos: em Melièrs, a intenção era atiçar o imaginário e a esperança de que um dia o homem possa atingir o nível tecnológico necessário a viajar a Lua; em Wiene, o propósito é despertar o incômodo, o sentimento do macabro, do bizarro, do sentimento alemão de pessimismo pós-guerra. Por essa razão, ouso dizer – e talvez seja parafraseado nas décadas que se seguem – a direção de arte de Caligari traz novas possibilidades artísticas e expressivas para o cinema. Na direção de arte, cumpre destacar, O Gabinete do Dr. Caligari mostra-se revolucionário, porque é construído sob os moldes do movimento artístico do Expressionismo (2). Os intelectuais até o momento não têm dado devida atenção ao cinema, fato que pode ser revisto.


A estética da película de Wiene ainda chama a atenção porque se preocupou em diferenciar, em tonalidades, o dia da noite durante o desenvolver do enredo. As cenas noturnas têm um tom azulado (como é a cena em que se apresenta pela primeira vez a pequena cidade de Hotenswall). O dia e a noite são, de forma proposital, diferenciados na sequência em que se exibe a cidade pela primeira vez. Inicialmente, uma tomada da cidade em perspectiva ampla com o tom azulado. Eis que se dá o close (fechamento de imagem acima referido) e, em seguida, a abertura da imagem, com a ausência do azul, indicando que é dia na cidade e que a feira de exibições está para se iniciar.


A câmera é fixa durante o desenvolver das cenas e não há uma rigidez de enquadramento, como por exemplo na cena de apresentação do personagem Alan. Nessa ocasião, a câmera permanece fixa, enquanto Alan caminha em sua casa, por algumas vezes “saindo de cena”. De certo, isso se dá porque o cinema sofre forte influência do teatro em sua composição nesses tempos. O público é apenas espectador, não participa da ação do filme. A história de Caligari, inclusive, é narrada por um jovem para um velho e para todos os espectadores. As atuações são marcadas pelo exagero de gestos, grande expressividade e dramaticidade dos personagens. A cena em que Cesare tenta matar uma jovem que dorme nos aposentos dela é um bom exemplo.


Embora intrigante e criativo, O Gabinete do Dr. Caligari causa incômodo e estranheza a quem lhe assiste. Desta forma, caros leitores, a indicação é que estejam preparados para presenciar o incomum. Por fim, traço um ousado prospecto: este filme recém-lançado de Robert Wiene, por representar tão fortemente uma cultura de crise e o reflexo do profundo desalento espiritual gestado nas trincheiras desta finalizada Guerra, pode vir a se tornar um dos grandes filmes da história do cinema. Caligari aponta para novas tendências e pode influenciar não apenas artistas alemães, mas de várias nações européias, ou até mesmo dos norte-americanos, que já se aventuram nas produções cinematográficas.

Paris, 1º de abril de 1920.


(1) Uma vez que a resenha foi escrita como se fosse à época do lançamento do filme, apenas aqui cabe o comentário de traçar um paralelo da estética expressionista e, especificamente, do personagem Alan, com os personagens e a estética de Tim Burton, cineasta norte-americano de Edward Mãos de Tesoura, O Estranho Mundo de Jack, A Noiva Cadáver, dentre outros.
(2) Para Rodrigo Carreiro, em crítica ao CineReporter, o Expressionismo em O Gabinete do Dr. Caligari foi levado às últimas consequências. Os cenários são de pano e madeira, as ruas distorcidas são marcadas a giz. Os figurinos são escuros e pesados, marcando forte contraste com o semblante dos personagens. Para Rodrigo, ainda, o filme de Wiene serve de inspiração para os filmes de terror que se seguem, tanto na Europa, quanto em Hollywood.

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