sexta-feira, 3 de abril de 2009

"A paixão de Joana D’Arc" por Yanna Luz


“Os bons close-ups irradiam uma atitude humana carinhosa ao contemplar as coisas escondidas, um delicado cuidado (...), o calor da sensibilidade”.
[...]


A expressão facial é uma das manifestações humanas mais subjetivas e individuais, é concretizada no close-up.”


Para quem só acredita vendo, a comprovação de tais afirmações acima vem fortemente registrada no inebriante ‘A paixão de Joana D’Arc’, de Carl Dreyer. Quase todo constituído em closes, principalmente de rostos, ‘A paixão... ’ traz uma espécie de reconstrução, através de um olhar sensível, do processo de julgamento de Joana D’Arc, condenada à fogueira por blasfêmia e bruxaria na França do século quinze.


A atmosfera estética do filme revela-se bastante diferenciada das que eram defendidas por outras correntes da época: a maquiagem parece ausente durante toda a história e a iluminação não ultrapassa os limites da naturalidade. Também cenário e figurino, sem pormenores, são envolvidos por uma simplicidade crua, como se para não desviar a atenção dos espectadores dos conflitos humanos expostos que, em oposição ao ambiente, carregam complexidade e densidade emocional.


O processo de identificação dos espectadores com a personagem de Joana é dado pelo posicionamento da câmera nas cenas, as quais modelam a narração com seus closes, angulações – picadas e contra picadas, utilizadas com intuito de expressar superioridade ou inferioridade do personagem diante das situações – enquadramentos. Observamos, por exemplo, o quanto é fácil sentir-se confrontado durante o julgamento: o posicionamento frontal que a câmera assume diante do juiz revela uma perspicaz subjetividade que faz com que o espectador coloque-se, quando diante do interrogante, no lugar do interrogado, assumindo inconscientemente a posição da própria Joana.


Porém, é de uma presença obrigatoriamente citável um aspecto determinante da identificação do público com D’Arc: a interpretação incontestável de Falconetti, favorecida a cada cena pela audácia fotográfica de Rudolph Maté, que emoldurou com primorosos planos aproximados as perfeitas expressões da atriz incorporadas ao papel. Com a atuação de Falconetti a essência humana foi visível aos olhos e tornou-se, diante das câmeras, quase palpável. A atriz acrescentou à personagem olhos que, em algum momento, inevitavelmente, resgatam de nossa memória a expressão de uma santa católica. Olhos que transbordam medo, angústia, fé e, às vezes, lágrimas. Sempre reveladores de um quase estado de transe intenso de se presenciar.


Por ser tão bem preenchido visualmente, o filme parece sentir-se saciado com o que foi capaz de comunicar na ausência do som: traz uma mudez auto-suficiente em seus sinais-significantes, o que nem sempre ocorre com os filmes mudos.


A ausência sonora no filme chega a acrescentar ao desempenho dos atores: ouvir mesmo o pouco que fala a boca de Joana, talvez fizesse com que seus olhos calassem alguns gritos. A verdadeira expressão facial nos passa mais credibilidade por não possuir as armadilhas que habitam os artifícios da fala.“A paixão de Joana D’Arc”, por fim, sintoniza com maestria a capacidade de exprimir o que se deseja sem sons, o inevitável envolvimento com sua concepção estética e o embalo de suas atuações. Toda essa atmosfera desperta no espectador formas de percepção há muito adormecidas. “Falados os segredos calam”, no entanto, se revelados silenciosamente com o tom certo, como o que foi dado ao filme, algumas cenas ganham o poder de pendurar no ar levitações do espírito.

8 comentários:

  1. Yanna,
    De onde são as citações que abrem teu ótimo texto?

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  2. É do "Nós Estamos no Filme", de Balázs. Obrigada pelo 'ótimo', fico feliz. =)

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  3. ;)
    Na volta da minha viagem, vamos conversar sobre os textos de todos. Eu gostei muito do resultado geral, vamos ver os ajustes necessários.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Não concordo com a segunda citação do sua resenha: "A expressão facial é uma das manifestações humanas mais subjetivas e individuais...". Acredito exatamente no contrário: a universalidade da linguagem não-verbal (isso inclui expressão corporal, facial, tom de voz, etc.) é a razão pela qual conseguimos nos identificar com pessoas e personagens de diferentes épocas e culturas de forma tão intensa, sem que estas precisem usar as palavras para transmitir qualquer coisa. Particularmente, acho que a citação não está em concordância com a idéia do texto, mas isso não tira, de modo algum, o brilho que ela tem. Parabéns!

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  6. Rebeca, eu acho que colocar uma citação que não condiz com a idéia do texto é um problema sério, obrigada por me alertar. Porém, ainda acho que faz sentido, e por isso mesmo a coloquei. Como a citação diz que a expressão facial é UMA das manifestações mais subjetivas e individuais, subentendo que não exclui as outras manifestações não verbais, como as que você citou. Achei que casava perfeitamente com o que eu gostaria de falar pois no filme temos muito mais a presença da expressão facial do que das outras formas de linguagem não verbal, visto que não há som para notarmos tom de voz, e os close ups são predominantemente de rostos, mesmo. Não discordo de você sobre a importancia do conjunto das linguagens, mas quis destacar a expressão facial, mesmo, e acho que essa citação resumiu bem. :)
    valeu aí :)

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  7. Acho que compreendi como você interpretou a citação. De fato, você tem de valorizar seu ponto de vista, e se este exalta a subjetividade, que assim seja. Mas ao defender da universalidade da linguagem não-verbal, não menosprezei a importância das particularidades e/ou individualidades presentes nos seres humanos. Se não fui clara, peço desculpas; e mais uma vez, parabéns.

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