sexta-feira, 19 de junho de 2009
"À nous la liberté" por Rebeca Virna
Assim que o primeiro filme “falado” surgiu (O Cantor de Jazz, 1927), foi vislumbrada a possibilidade de se investir em um novo gênero cinematográfico: o musical. Apesar dos produtores só terem enxergado a princípio o seu potencial comercial, o gênero também se destacou por abordar com propriedade temas controversos, como a desigualdade social, o preconceito racial, o vício nas drogas e no jogo, etc. Este é o caso de À nous la liberté, musical francês de 1931 dirigido por René Clair.
O filme é, ao mesmo tempo, uma crítica e uma sátira à sociedade moderna, que, com a chegada da revolução industrial e o desenvolvimento do capitalismo, incorporou uma mentalidade e uma atitude que teve como conseqüência a desumanização dos indivíduos. Em sua película, René Clair pretendeu promover o resgate, através das experiências das personagens, do que há de mais originário no ser humano: sua liberdade.
Na primeira cena do filme vemos vários presidiários trabalhando em uma linha de produção instalada na própria cadeia. Enquanto executam suas funções eles cantam: “A liberdade é o dever do homem feliz / Ele gosta de amor e céu azul / Mas, então, há alguns que os piores crimes cometeram... / É a triste história que contamos”. Esta canção já delineia a idéia central da trama: a frustração daqueles que se encontram em situação de forte submissão a algo ou a alguém e que por isso não podem tomar as rédeas de suas próprias vidas. É justamente para escapar desta submissão que Louis e Émile decidem fugir da prisão. O plano de fuga dos dois é insinuado através de belos close-ups: num deles Émile rouba e esconde um instrumento que depois será utilizado para cerrar uma grade; em outro, Louis pisca o olho num sinal de concordância, e atrai a atenção do guarda para que Émile não seja surpreendido.
Quando chega a noite, os amigos dão início à fuga; depois de conseguirem escapar da
cela, é a vez de escalar o muro da prisão. Faltando pouco para alcançarem a liberdade, os guardas percebem a tentativa de fuga e alcançam Émile antes que ele possa escapar. Louis consegue fugir da prisão e para não ser apanhado corre o mais depressa possível. Esbarra em um ciclista, acidentalmente, toma sua bicicleta e acaba vencendo uma corrida de forma completamente inesperada. Esta cena é importante para a compreensão da trama, uma vez que compõe uma alegoria: ao ganhar a corrida, Louis teve como prêmio a sua liberdade, e uma nova etapa, aparentemente de muito sucesso, iniciou-se em sua vida.
Graças a sua esperteza, Louis consegue se tornar o dono de uma grandiosa fábrica de fonógrafos, onde é o imperativo é: trabalho, trabalho, trabalho! É neste cenário uma das cenas mais conhecidas do cinema foi realizada pela primeira vez: os operários da linha de montagem executam suas funções num ritmo frenético, quase sobre-humano, até que um dos trabalhadores não consegue dar conta da sua tarefa e cria uma grande confusão na fábrica. Uma situação semelhante é vivida pelo protagonista de Modern Times, de 1936. Apesar de Charles Chaplin ter sido acusado de plágio por alguns, o cineasta britânico disse nunca ter assistido ao filme. Pela admiração que tinha por Chaplin, René Clair nunca tomou parte da controvérsia e encarou as coincidências entre os filmes como uma homenagem.
Enquanto Louis desfruta de sua riqueza e poder, Émile encontra-se desiludido na prisão. Ele tenta o suicídio, mas acaba quebrando a grade da cela e aproveitando a oportunidade para fugir. Fora da prisão, ele tenta encontrar a moça pela qual se apaixonou, mas acaba se deparando com seu ex-companheiro de cela. O reencontro não é agradável: Louis finge não conhecer Émile para não despertar a desconfiança das pessoas e cria uma situação embaraçosa para ambos. Todavia, Émile consegue sensibilizar o amigo que agora só pensa em dinheiro e poder e fazer com que ele se lembre das coisas verdadeiramente importantes na vida: a amizade e a liberdade.
A cena final é catártica. O responsável pela automatização da fábrica de Louis faz um discurso apaixonado sobre a grandeza da ciência e os progressos da sociedade moderna; há um corte em seguida para um plano que mostra uma mala cheia de dinheiro se abrindo e espalhando todas as suas cédulas através de um duto de ventilação. Logo os dois elementos se unem num único plano: as pessoas que antes pareciam estar atentas ao discurso correm atrás do dinheiro que dança pelo pátio da fábrica, demonstrando completa falta de interesse nas idéisa que estavam sendo disseminadas pelo orador.
Louis percebeu que as pessoas que trabalhavam na fábrica estavam tão aprisionadas quanto aquelas que estavam na prisão e por isso decidiu abandonar tudo que construiu para viver uma vida simples, mas livre, ao lado do seu amigo. A liberdade passou a significar para Louis e Émile muito mais do que o contato com o mundo externo, passou a ser encarada como um estado de consciência. Livres das amarras do dinheiro (no caso de Louis) e do amor (no caso de Émile), eles agora poderiam viver, de fato, a vida. É esta a crítica que René Clair faz a sociedade industrial, que se deixou enganar pelas promessas de uma vida melhor e mais fácil e perdeu o controle sobre a sua própria existência e humanidade.
Apesar de ter sido considerado por alguns críticos da época um musical “menor” por divergir em alguns aspectos dos musicais hollywoodianos, À nous la liberté tem um diferencial em relação a maioria dos musicais produzidos até 1931: a sua narrativa é construída através das canções, e não sobre elas. Isto cria uma relação ainda mais harmoniosa entre o que é visto e o que é ouvido. As canções foram tão bem construídas por Georges Auric que suprem a ausência da dança, e as excelentes atuações conferiram um tom de humor ao drama. À nous la liberté é uma prova concreta de que um musical pode ser inteligente sem ser entediante.
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