quinta-feira, 25 de junho de 2009
"O Mundo de Apu" por Rebeca Virna
O Mundo de Apu (1959) é o terceiro e último filme que compõe A Trilogia de Apu, realizada pelo cineasta indiano Satyajit Ray. A trilogia retrata a trajetória de Apurba Roy, com todos os altos e baixos por ele vivenciados desde a sua infância até a vida adulta, como a descoberta do amor e a morte de seus familiares.
Quando O Mundo de Apu se inicia, temos o pressentimento de que a vida do jovem indiano será fatalmente marcada pela miséria e pela rejeição: ele não tem como pagar o aluguel do quartinho onde vive precariamente; não consegue emprego como professor; mal tem o que comer. Diante deste triste quadro, somos surpreendidos pela perseverança do protagonista que continua a sonhar com uma vida melhor, que, nesse caso, significa apenas a concretização de suas antigas aspirações. É a partir daqui que conseguimos entrever que o filme não se trata de mais uma produção indiana interessada em fazer um retrato da situação sócio-econômica do país, ou de promover um turismo cinematográfico por terras exóticas.
O enredo se foca em Apu; as particularidades da cultura e sociedade indiana constituem apenas o cenário onde a personagem se apresenta, tanto que o filme não possui trilha sonora - característica que marca fortemente os filmes indianos pelo uso das músicas de sua tradição. Para Satyajit, o silêncio é mais representativo, e conferiu ao filme ares mais realistas.
É claro que nenhum filme consegue eximir-se da visão de mundo de seu idealizador, uma vez que “o universo do artista se faz presente na sua obra” , mas no caso de Mundo de Apu, a sutileza com que Satyajit Ray abordou os aspectos culturais foi fundamental para que sua obra fugisse de alguns clichês e estabelecesse novos paradigmas para o cinema em seu país. Satyajit cria um diálogo com os seus espectadores, e até as questões mais técnicas são pensadas para que estes participem ativamente do processo de construção do sentido do filme: os planos predominantemente abertos, aliados a profundidade de campo, permitem que o observador sinta-se à vontade para escolher o que deseja olhar. Não ficamos limitados à visão do diretor e aos seus juízos de valor; podemos (e devemos) fazer nossas próprias interpretações sobre a trama e o simbolismo que apresenta.
Um dos momentos divisores de águas do filme é o reencontro de Apu com um amigo que não via há tempos; Pulu lhe promete trabalho e o convida para uma viagem, cujo motivo é o casamento de sua prima. A situação muda drasticamente quando se descobre que o futuro esposo da moça sofre de problemas mentais, e que ela precisaria encontrar rapidamente outro noivo para que não fosse vítima de uma maldição; Apu é visto como a única saída para tal problema. Apesar de rejeitar a idéia a princípio, seus valores fazem-no voltar atrás e ele acaba casando-se com Aparna. Aqui é possível perceber que a dimensão moral está implicitamente presente no enredo, e que ela sempre vem à tona quando um personagem, geralmente Apu, tem a sua frente uma importante decisão a ser tomada.
O acaso e a contingência são outras marcas registradas do filme. Tão inesperadamente quanto viu-se obrigado a casar, Apu encontrou o amor e a felicidade; súbita também foi a morte da sua esposa. Apu precisou aprender o desapego às coisas do mundo, que se mostraram passageiras e enganadoras, e foi esse o motivo pelo qual abandonou Kajal (seu filho) e foi viver solitariamente em Calcutá. Mas como o seu mundo é fortemente determinado pelos princípios ético-morais, e nele quase tudo pode acontecer, Apu arrepende-se por ter partido e retorna ao seu filho na esperança de juntos conseguirem enfrentar as dificuldades da vida.
Apesar da tragédia fazer-se presente em vários momentos, O Mundo de Apu não é um filme pessimista; ao contrário, a esperança está implícita em sua narrativa. A conhecida fórmula “o tempo é o melhor remédio” parece ser levada as últimas consequências por Satyajit e mostra que, apesar de todas as desgraças que o acometeram, Apu conseguiu sobreviver às tragédias e superar seus traumas. O grande trunfo do filme está justamente em transcender a dimensão local, particular, e constituir uma história universal: Apu representa todo e qualquer ser humano em seus momentos de mais intensa dificuldade e alegria.
O Mundo de Apu é capaz de sensibilizar o mais frio dos espectadores, seja pelo seu drama ou pelo seu humor circunstancial. A beleza com a qual os sentimentos são retratados através de um olhar ou de um sorriso também faz dele um filme inesquecível. Não é à toa que é considerado um importante marco no cinema de arte indiano e consagrou Satyajit Ray como um dos maiores cineastas do país.
segunda-feira, 22 de junho de 2009
"As bicicletas de Sica" por Paulo Faltay
Um rapaz é salvo de seu iminente afogamento. Pessoas empenham seus pertences em troca de alguns trocados. Miseráveis se dirigem ao culto de Igreja para receber serviços de barbearia e garantir comida. A luta por emprego, o cotidiano das mulheres. Em meio a tudo isso, Ricci, vivido por Lamberto Maggiorani, em seu recém-conquistado emprego, cola cartazes de Gilda, grande sucesso hollywoodiano da época. A crítica aos grandes filmes de entretenimento é gritante, a ordem é fugirr dos enredos escapistas do cinema. A frase “nunca houve mulher como Gilda” é politicamente ressignificada. O contraste da exuberância de Rita Hayworth com a situação de Ricci salta à tela, Entretanto, a frase que mais vem à cabeça é outra: “nunca houve personagem mais chato como Bruno”, o filho do protagonista de Ladrões de Bicicleta, dirigido por Vittorio de Sica.
Na escola de cinema antiilusionista, Ladrões expõe cenas cotidianas e banais, longe dos enredos e romances “burgueses”. Porém, mais do que o cineasta russo, a grande referência de Ladrões foi Siegfried Kracauer e sua estética realista. Surgida como resposta ao formalismo dominante no início da cinematografia, a tendência realista fez suas primeiras aparições em filmes no começo da década de 20. Porém o desencanto, os horrores da Segunda Guerra e suas conseqüências provocaram a explosão da tendência, no neo-realismo, observado com grande força na Itália. Talvez, um dos países mais afetados pelo conflito.
Assim como na literatura, a expressão realista cinematográfica seria um contraponto ao cinema romântico, burguês. Seu objetivo era criticar e desmistificar o cinema ficcional, que visava à alienação das massas, transformando a sociedade com relatos impressionistas da realidade. Kracauer defendia cinema de valor dizendo que ele deveria permitir ao espectador o reconhecimento do seu mundo, para criticá-lo e contribuir na busca de uma vida melhor. O cinema seria, então, um meio para se conhecer e ganhar consciência do mundo.
Esse antiglamour cinematográfico está a serviço da história de Ricci, um desempregado que consegue um emprego de colador de cartazes na rua, após muita espera. Só que para exercê-lo, é necessário possuir uma bicicleta. Ricci e sua mulher, Maria (Lianella Carell), empenham seus lençóis, únicos bens de algum valor que ainda lhes restavam e conseguem o dinheiro para comprar uma. No entanto, no primeiro dia de trabalho, Ricci, em sua ingenuidade, acaba sendo roubado, e sua bicicleta é levada. Entre o drama do crime, está o menino Bruno (Enzo Staiola), filho do casal. Amante das bicicletas, chega a cuidar da nova como quem cuida de um filho, o menino sai com o pai na jornada em busca do tesouro perdido.
A procura pelo ladrão e pela bicicleta é o ponto de partida de uma busca pela Roma da vida real. Marginais, mendigos, prostitutas e misérias estão sempre compondo a paisagem. Cenas reais e um retrato melancólico do povo italiano. Apesar de críticas pertinentes, destaco a desesperança com a igreja, apresentada como misto de assitencialismo e misticismo, o filme é excessivamente piegas e didático. “Por que devo querer me matar, se vou morrer mesmo”, chega a lamentar o protagonista. E a insistência de Sica em sempre retratar os sofrimentos do jovem Bruno, a cena do restaurante é um bom exemplo, faz com que me posicione entre aqueles que enxergam quase que uma demagógica exploração infantil.
Na parte técnica, o filme "anda" com os protagonistas, sem a câmera se exibir, em um espaço de um dia. Ladrões quebra muitas das regras técnicas da época, com muitas cenas externas, iluminação natural e utilização de pessoas reais como atores. A técnica é uma ferramenta apenas para colocar em evidência o assunto, o tema e os personagens que seria por si só a essência do filme.
A fotografia traz uma contribuição muito forte para o cinema realista. A relação com a imagem é uma referência a ela. Para o realismo, a fotografia é o negativo do mundo, enquanto a teoria formativa, a sua montagem, entendia a captação do real como a transformação da realidade apreendida. Porém, para Kracauer, isso seria um crime. A transformação, principalmente pela montagem, um supérfluo, tiraria a verdade do filme, restando apenas a estética formal.
O final do filme é, com certeza, a melhor parte. Apesar de piegas, o gesto do filho que estende a mão ao pai, humilhado, é tocante. E aqui vale o registro à interpretação de Maggiorani, cujo olhar externa todo o lamento do personagem. Ricci não é mais o pai herói, idealizado por seu filho, mas este não o deixa de amar por isso. Na verdade, ao estender-lhe a mão, o ama, sem reversas, em sua vergonha e fraqueza, mas plenamente. Nesse momento, também estendo por um momento a mão e reconheço seus momentos de beleza.
sexta-feira, 19 de junho de 2009
"Parede invisível" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz
Argélia, anos 1950. Enquanto o mundo europeu ainda se recupera da guerra que travou entre si, novos conflitos surgem. O sentimento nacionalista cresce entre os países colonizados, o que leva a novos confrontos, travados contra o domínio de suas metrópoles. É nesse clima de tensão que encontramos Ali La Pointe [líder guerrilheiro] e mais três pessoas: um jovem, uma mulher, uma criança. Logo nas primeiras cenas de A Batalha de Argel [Argélia / Itália, 1965], de Gillo Pontecorvo, somos colocados diante da problemática que é discutida pelo filme.
Os quatro personagens acima são os únicos sobreviventes de uma organização guerrilheira, a Frente de Libertação Nacional da Argélia [FLN]. Estão diante do Exército Francês que ameaça explodir o esconderijo, caso não se rendam. Apenas uma falsa parede separa os dois lados do conflito. Uma luta entre inimigos desconhecidos. A parede divisora entre os dois lados do confronto ilustra um tema presente em todo o filme, a indiferença do ocupante e sua opção de não conhecer o ocupado.
A grande dificuldade do Coronel Mathieu e do exército francês consiste em identificar o inimigo. Inspirado no Coronel Jacques Massu – carrasco de Argel no conflito real –, Mathieu personifica o cinismo e a indiferença em relação ao adversário. Ele quer saber com quem disputa o domínio sobre o território e a população da Casbah, maior bairro popular da capital da colônia, e para isso aplica métodos de tortura, falando deles na imprensa com naturalidade.
A FLN, apoiada pela população, tendo noção desta incapacidade do opressor em reconhecer a diferença, utiliza como tática de guerrilha a neutralização das aparências. Diante do ódio cego do Bairro Europeu da cidade, que simplesmente escolhe seus culpados, o movimento pró-independência com algumas de suas integrantes devidamente caracterizadas como francesas, passam desapercebidas entre os europeus. Aqui é reforçada miopia que age contra aqueles que “parecem” inimigos, e são detidos, enquanto os superficialmente reconhecíveis aliados são liberados para o fluxo na Casbah.
Lançado em 1966, é o primeiro filme em longa-metragem da nação argelina. Na turbulência cultural, social e política dos anos 1960, A Batalha de Argel foi banida da França até 1971 [o primeiro cinema que o exibiu sofreu um atentado], assim como em diversos outros países, como o Brasil da ditadura militar. A película de ficção trata de maneira bastante realista os acontecimentos que ocorreram entre 1954 e 1957, tudo sobre a ótica dos argelinos.
O ponto de vista adotado procura apresentar a luta de um povo então colonizado contra a presença e a indiferença do estrangeiro, que insiste em ocupar o território. E para continuar no domínio, o colonialismo francês se vê na obrigação de reconhecer seu adversário. Na construção do real a partir da ótica dos ocupados o filme se utiliza de recursos da linguagem documental, como as narrações em off / radiofônicas e uso de imagens reais. Em meio a todo o tratamento realista das cenas fictícias, o filme afirma sua fluidez ao fazer os espectador se questionar sobre o que foi captado no momento dos acontecimentos reais e o que foi captado para a produção do filme.
Embora toda essa transparência, o filme se resolve muito bem como a ficção que é, de fato. Aspectos narrativos como o texto e seus subtextos, a dramaticidade das cenas de destruição e repressão; e a pontuação oferecida pela trilha sonora, colocam bem definida a reconstrução histórica do contexto do filme, embora ainda deixe alguns questionamentos sobre o que há de real e ficção. Num dos trechos de Argel, Mathieu se utiliza do cinema para falar do adversário, que pode ser qualquer um. Na metalinguagem desta cena, percebemos claramente a ineficácia dos franceses em identificar uma das guerrilheiras, vestida tal como uma européia, que passa diante da tela de Mathieu, sem que nenhum deles perceba nada além de sua beleza. Nesse momento o cinema se apresenta como um meio não apenas para se conhecer o que está invisível, como também para fazer – como o Coronel faz – uma reflexão sobre os métodos empregados pelos franceses.
Em outro momento, um dos líderes chega a afirmar que “eles não podem ou não querem ver a situação argelina”, informação confirmada por Mathieu, que, conseguindo capturar um dos líderes, comenta que se sente como se o conhecesse, pelo tempo que o procurou a partir de sua fotografia. Mais uma vez, a representação do real mediada pela máquina, o recorte do mundo, acaba por propor um olhar mais atento. O francês chegou a conhecer quase todos os principais líderes, conhecidos por seus retratos. No entanto, seus últimos adversários, pessoas de idade e gênero diferentes, com o mesmo ideal, ficam presos na parede da invisibilidade. Nunca chega a se conhecer.
Em A Batalha de Argel, a construção do realismo pelo cinema opta por um ponto de vista bem marcado. Embora a sedução da imagem e sua ligação com a realidade histórica coloquem a verossimilhança diante dos nossos olhos e ouvidos, sua narrativa opera muito bem como discurso de constituição formal dos fatos e das características dos personagens, reais ou inspirados na realidade. A imagem propõe uma interpretação histórica do ponto de vista do ocupado sobre o ocupante. O ocupante e seu não olhar.
"À nous la liberté" por Rebeca Virna
Assim que o primeiro filme “falado” surgiu (O Cantor de Jazz, 1927), foi vislumbrada a possibilidade de se investir em um novo gênero cinematográfico: o musical. Apesar dos produtores só terem enxergado a princípio o seu potencial comercial, o gênero também se destacou por abordar com propriedade temas controversos, como a desigualdade social, o preconceito racial, o vício nas drogas e no jogo, etc. Este é o caso de À nous la liberté, musical francês de 1931 dirigido por René Clair.
O filme é, ao mesmo tempo, uma crítica e uma sátira à sociedade moderna, que, com a chegada da revolução industrial e o desenvolvimento do capitalismo, incorporou uma mentalidade e uma atitude que teve como conseqüência a desumanização dos indivíduos. Em sua película, René Clair pretendeu promover o resgate, através das experiências das personagens, do que há de mais originário no ser humano: sua liberdade.
Na primeira cena do filme vemos vários presidiários trabalhando em uma linha de produção instalada na própria cadeia. Enquanto executam suas funções eles cantam: “A liberdade é o dever do homem feliz / Ele gosta de amor e céu azul / Mas, então, há alguns que os piores crimes cometeram... / É a triste história que contamos”. Esta canção já delineia a idéia central da trama: a frustração daqueles que se encontram em situação de forte submissão a algo ou a alguém e que por isso não podem tomar as rédeas de suas próprias vidas. É justamente para escapar desta submissão que Louis e Émile decidem fugir da prisão. O plano de fuga dos dois é insinuado através de belos close-ups: num deles Émile rouba e esconde um instrumento que depois será utilizado para cerrar uma grade; em outro, Louis pisca o olho num sinal de concordância, e atrai a atenção do guarda para que Émile não seja surpreendido.
Quando chega a noite, os amigos dão início à fuga; depois de conseguirem escapar da
cela, é a vez de escalar o muro da prisão. Faltando pouco para alcançarem a liberdade, os guardas percebem a tentativa de fuga e alcançam Émile antes que ele possa escapar. Louis consegue fugir da prisão e para não ser apanhado corre o mais depressa possível. Esbarra em um ciclista, acidentalmente, toma sua bicicleta e acaba vencendo uma corrida de forma completamente inesperada. Esta cena é importante para a compreensão da trama, uma vez que compõe uma alegoria: ao ganhar a corrida, Louis teve como prêmio a sua liberdade, e uma nova etapa, aparentemente de muito sucesso, iniciou-se em sua vida.
Graças a sua esperteza, Louis consegue se tornar o dono de uma grandiosa fábrica de fonógrafos, onde é o imperativo é: trabalho, trabalho, trabalho! É neste cenário uma das cenas mais conhecidas do cinema foi realizada pela primeira vez: os operários da linha de montagem executam suas funções num ritmo frenético, quase sobre-humano, até que um dos trabalhadores não consegue dar conta da sua tarefa e cria uma grande confusão na fábrica. Uma situação semelhante é vivida pelo protagonista de Modern Times, de 1936. Apesar de Charles Chaplin ter sido acusado de plágio por alguns, o cineasta britânico disse nunca ter assistido ao filme. Pela admiração que tinha por Chaplin, René Clair nunca tomou parte da controvérsia e encarou as coincidências entre os filmes como uma homenagem.
Enquanto Louis desfruta de sua riqueza e poder, Émile encontra-se desiludido na prisão. Ele tenta o suicídio, mas acaba quebrando a grade da cela e aproveitando a oportunidade para fugir. Fora da prisão, ele tenta encontrar a moça pela qual se apaixonou, mas acaba se deparando com seu ex-companheiro de cela. O reencontro não é agradável: Louis finge não conhecer Émile para não despertar a desconfiança das pessoas e cria uma situação embaraçosa para ambos. Todavia, Émile consegue sensibilizar o amigo que agora só pensa em dinheiro e poder e fazer com que ele se lembre das coisas verdadeiramente importantes na vida: a amizade e a liberdade.
A cena final é catártica. O responsável pela automatização da fábrica de Louis faz um discurso apaixonado sobre a grandeza da ciência e os progressos da sociedade moderna; há um corte em seguida para um plano que mostra uma mala cheia de dinheiro se abrindo e espalhando todas as suas cédulas através de um duto de ventilação. Logo os dois elementos se unem num único plano: as pessoas que antes pareciam estar atentas ao discurso correm atrás do dinheiro que dança pelo pátio da fábrica, demonstrando completa falta de interesse nas idéisa que estavam sendo disseminadas pelo orador.
Louis percebeu que as pessoas que trabalhavam na fábrica estavam tão aprisionadas quanto aquelas que estavam na prisão e por isso decidiu abandonar tudo que construiu para viver uma vida simples, mas livre, ao lado do seu amigo. A liberdade passou a significar para Louis e Émile muito mais do que o contato com o mundo externo, passou a ser encarada como um estado de consciência. Livres das amarras do dinheiro (no caso de Louis) e do amor (no caso de Émile), eles agora poderiam viver, de fato, a vida. É esta a crítica que René Clair faz a sociedade industrial, que se deixou enganar pelas promessas de uma vida melhor e mais fácil e perdeu o controle sobre a sua própria existência e humanidade.
Apesar de ter sido considerado por alguns críticos da época um musical “menor” por divergir em alguns aspectos dos musicais hollywoodianos, À nous la liberté tem um diferencial em relação a maioria dos musicais produzidos até 1931: a sua narrativa é construída através das canções, e não sobre elas. Isto cria uma relação ainda mais harmoniosa entre o que é visto e o que é ouvido. As canções foram tão bem construídas por Georges Auric que suprem a ausência da dança, e as excelentes atuações conferiram um tom de humor ao drama. À nous la liberté é uma prova concreta de que um musical pode ser inteligente sem ser entediante.
“O Estranho Mundo de Apu” por Tiago Bacelar
Hoje, nós vivemos uma febre chamada Índia. "Quem Quer Ser um Milionário", do diretor Danny Boyle, vencedor de oito Oscars, voltou todas as atenções para o cinema de Bollywood e para o país retratado nesta produção audiovisual. No Brasil, o assunto ganhou ainda mais destaque com a novela global "Caminho das Índias", de Glória Peres. Recentemente, tive acesso a um filme que até o final dos anos 90 era considerado perdido, pelo fato dos negativos originais terem sido destruídos num incêndio. A obra foi restaurada a partir de cópias.
O filme chama-se "O Mundo de Apu". É de 1959 e foi dirigido por Satyajit Ray. Ele baseou-se no romance "Aparajito", de Bibhutibhushan Bandopadhyay, para criar essa estranha obra do cinema marginal indiano, que foi um movimento influenciado pelo realismo e naturalismo, sendo um olho vivo sobre os impactos do clima sócio-político na época. O cinema marginal da Índia ocorreu ao mesmo tempo da nouvelle-vague francesa e japonesa e durou até o final dos anos 80. Depois, houve uma crise na indústria de cinema indiana, retomada na segunda metade dos anos 90 com Bollywood.
Para adaptar "Aparajito para o cinema", Satyajit dividiu o livro em três filmes, produzidos entre 1955 e 1959. "Canção da Estrada", "Aparajito" e "Mundo de Apu" fazem parte da trilogia Apu, criada com música de Ravi Shankar, baixo orçamento e elenco amador. "O Mundo de Apu" ganhou três prêmios nacionais de cinema e arrebatou os festivais de Cannes, Berlim e Veneza.
Essa trilogia de Ray foi tão importante que repercutiu, principalmente no quesito iluminação, nos trabalhos de Martin Scorcese, James Ivory, Abbas Kiarostami, Elia Kazan, François Truffaut, Carlos Saura, Isao Takahata, Wes Anderson, Akira Kurosawa, Jean-Luc Godard e Danny Boyle. A cena final de "O Mundo de Apu" foi repetida na produção My Family, de 1995, dirigida por Gregory Nava.
Pelo seu brilhante trabalho, Ray Satyajit tornou-se a segunda personalidade do cinema, depois de Chaplin, a receber o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Oxford e recebeu em 1992 um Oscar honorário da Academia, poucas semanas antes do seu falecimento, em Calcutá, na Índia, aos 70 anos. Satyajit foca no filme O Mundo de Apu a fase adulta de Apu, introduzindo ao cinema indiano os brilhantes atores Soumitra Chatterjee (Apu) e Sharmila Tagore (Aparna).
O filme, que já aviso logo não tem a famosa dancinha, é uma visão de como é viver num país de Terceiro Mundo. Traz uma bonita história de amor, complicada aos moldes das Mil e Uma Noites, entre Apu e sua esposa Aparna. O ator Swapan Mukherjee atuou como Pulu, o melhor amigo de Apu. A montagem retrata bem a engraçada e tensa relação de Chatterjee e Tagore durante o filme, realçada pela a atuação desses estreantes atores, que depois fariam inúmeras produções de Ray. Alok Chakravarty fez seu primeiro papel no cinema como Kajal, filho de Apu e Aparna, cuja mãe morre no parto, iniciando no longa-metragem um verdadeiro dramalhão mexicano, aonde tudo, mas, tudo mesmo é possível de acontecer. A música de Ravi Shankar, que não é personagem de Glória Peres, pontua perfeitamente as ações da narrativa e de cada personagem, através do leitmotiv wagneriano.
O Mundo de Apu é um filme que vale a pena ser visto pela sua importância na história do cinema, por ter revelado a Índia para o mundo e mostrar que história de amor misturado a um drama de Terceiro Mundo pode resultar numa grande obra. A produção de Ray é altamente recomendável.
sábado, 13 de junho de 2009
"I’d like to be in a musical" por Paulo Faltay
Entendo perfeitamente quem não gosta de musicais. Por muito tempo também compartilhei do estranhamento e repulsão aos filmes do gênero, não conseguia disfarçar um sorriso de desconforto e vergonha alheia quando, sem motivo aparente, os personagens interrompiam uma atividade ou conversa e começavam a sapatear e cantarolar alguma melodia qualquer. Permaneci com esse incômodo constante até que alguém me provocou (ou li em algum lugar, não me recordo ao certo): “Mas imagina como as pessoas seriam muito mais descomplicadas e leves se simplesmente expressassem seus sentimentos e angústias dessa maneira”. A partir desse momento, passei não só a compreender a afetação dos musicais, como também a admirá-la. Afinal, quem nunca desejou sair dançando e cantando na chuva, tal qual Gene Kelly, após receber um tão desejado beijo?
É vital, portanto, ao assistir aos filmes do gênero que se pratique um exercício de suspensão da realidade para desfrutar a liberdade narrativa e o aspecto lúdico das seqüências musicais. Desta maneira, é fácil e encantador perceber porque Maria, personagem de Natalie Wood, em West Side Story (1961), começa a cantarolar para as amigas portorriquenhas, e para si mesma, como ela se sente bonita, charmosa e graciosa por estar apaixonado por um bonito e maravilhoso rapaz (o que não se revela difícil, pois exercício de suspensão maior é exigido, no filme, ao enxergar toda a afetação das coreografias dos integrantes das gangues de rua como algo essencialmente másculo, agressivo e violento).
O pretty wonderful boy em questão é Tony, interpretado por Richard Beymer, antigo líder da gangue dos Jets, formada por americanos brancos anglossaxônicos, que disputa território no subúrbio de Upper West Side, em Nova York, com os Sharks, grupo dos imigrantes portorriquenhos, cujo comandante é justamente o irmão de Maria. A trama de amor impossível, adaptação livre de Romeu e Julieta, de Sheakspeare, traz novos elementos: o ódio racial e a intolerância.
Ao invés de duas famílias feudais, a rivalidade apresentada está assentada na xenofobia e no racismo, no conflito entre os Jets (“jatos”, representantes de um futuro promissor) e os Sharks (“tubarões”, o sorrateiro animal predador). Vale lembrar que a legislação dos atuais direitos civis americanos, que coíbe a discriminação racial só entrou em vigor em 1964, ou seja, após o filme. Essa problemática social das precárias condições de vida, da redução dos postos de trabalho e da transformação dos imigrantes em exército de reserva em contraponto ao livre acolhimento dos Estados Unidos permeia a narrativa de West Side.
No entanto, apesar do claro contraste, os dois grupos partilham da exclusão e do desejo de pertencimento a algum corpo social. E além do sentimento dos personagens, as sequências musicais também apresentam um relevante teor político. Os imigrantes expressam uma relação ambígua com os Estados Unidos, na canção America, enquanto os nascidos no país se sentem incompreendidos e marginalizados. A crítica às instituições é retratada na figura do oficial Krumke, ridicularizado na música Gee, Officer Krumke.
Com músicas do maestro e compositor Leonard Bernstein, a luta entre as gangues é retratada nas coreografias. Sob responsabilidade do coreógrafo Jerome Robbins, que co-dirigiu o filme com Robert Wise, e encenou a versão teatral do musical na Broadway, a violência se transforma em uma dança na qual é perceptível a tensão, mas através de uma atmosfera lúdica, que retira o característica de conflito violento. Ainda que retrato tanto asséptico da rebeldia juvenil, em especial se comparada à efervescência dos movimentos políticos e de contracultura da época, cabe aqui uma superficial analogia. O hip-hop, outra expressão musical das gangues dos subúrbios nova-iorquinos, também não está, de forma mais brutal e coerente, apoiado na junção de letras de denúncia com uma coreografia inusitada?
O grande mérito de West Side, no entanto, é a comutação entre a comédia musical e a tragédia fugindo do formalismo da ópera. Na verdade, mais que uma mistura entre os gêneros, o filme se desloca sutilmente entre a fronteira do musical romântico e da tragédia. A mudança é perceptível na transformação sofrida pela doce Maria. Em sua primeira cena, a personagem de Natalie Wood é apresentada sob uma aura angelical. Com um vestido branco, que ela reclama ser adequado apenas para rezar, Maria revela um intenso desejo de viver e amar.
Após a morte do amado, entretanto, ela se sente capaz de matar. Ela compreende, finalmente, o ódio que permeia a relação entre os grupos rivais. O véu negro que a envolve é a imagem não só do luto, mas também de seu estado de espírito. O desfecho é ainda mais cruel do que a obra Sheakspeareana. Se os Montecchios e os Capuletos se reconciliam diante da morte dos filhos, os Jets e os Sharks apenas esboçam uma trégua momentânea, velando o corpo de Tony. E ao casal, ao contrário da obra de Sheakspeare, não é permitida uma união nem na tragédia.
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"Julie Andrews" por Rafaella Costa
Julia Elizabeth Wells, ou apenas Julie Andrews, se tornou um dos mais importantes nomes da história quando se trata de verdadeiro talento. Nascida em 1935, Surrey, Inglaterra, mostrou desde seus 7 anos o potencial impressionante de sua voz. Começou a ter aulas de canto e a se apresentar com sua mãe, a pianista Barbara Wells, e seu padrasto, Ted Andrews, cantor e artista de Vaudeville.
Com apenas 12 anos já cantava árias como “Polonaise” da ópera Mignon e no ano seguinte se apresentava para nada menos que a Família Real. Julie não parecia muito convencida que trabalhar desde cedo lhe serviria de alguma coisa, exceto pelo dinheiro que ajudava a família. Numa entrevista em 2007 ela comentou: “... nada é um completo desperdício. Qualquer coisa que você faça eventualmente pode lhe ser útil. Eu me lembro dos dias que fazia teatro de Vaudeville ao redor da Inglaterra e ficava me perguntando o que estava ganhando com aquilo, mas eu estava aprendendo a lidar como público e 20 anos depois, eu fiz Mary Poppins.”. E fez história. Não demoraria muito a estrear na Broadway com a versão americana de “O Namoradinho” (The Boy Friend, 1954) no papel de Polly Brown e logo depois como Eliza Doolittle em “Minha Bela Dama” (My Fair Lady, 1956).
Em 1960, após o papel da rainha Guenevere em Camelot, Julie foi chamada para seu primeiro papel mais marcante nos cinemas: interpretar a babá Mary Poppins, na mais nova produção da Disney na época, no filme homônimo em 1964. O papel rendeu-lhe merecido Oscar ao marcar sua voz belíssima nas canções do filme e emocionar a todos com seu carisma e talento diante das telas. Entre seus papéis musicais no cinema, o absolutamente mais marcante seria ao interpretar Maria em “A Noviça Rebelde” (The Sound of Music, 1965). Julie ainda seria Millie Dillmount em “Positivamente Millie” (Thoroughly Modern Millie, 1967), Gertrude Lawrence no musical/biografia “A Estrela” (Star!, 1968) e Lili Smith em “Lili, Minha Adorável Espiã” (Darling Lili, 1970). Além de musicais Julie atuou em comédias, entre elas a divertida “Vitor ou Vitória?” (Victor/Victoria, 1982), em dramas como Havaí (Hawaii, 1966) e suspenses.
Até hoje essa fantástica atriz continua impressionando a todos com seu trabalho, sendo um exemplo de postura, talento e dedicação. Julie é capaz de em menos de duas horas de projeção emocionar com sua sensibilidade e fazer rir com seu humor infalível. Essa é a beleza do trabalho dessa memorável artista que marcou crianças e adultos, e continua prometendo surpreender todos os públicos em qualquer que seja o gênero. Julie Andrews é uma artista completa.
terça-feira, 9 de junho de 2009
"Pacto de Sangue" por Wilson Rocha
Quando Billy Wilder escreveu e dirigiu Pacto de Sangue, seu terceiro filme, não tinha a menor idéia de que iria criar não apenas um cult, mas estaria consolidando um estilo cujos críticos definiriam posteriormente como noir. Tendo suas raízes nos policiais americanos de gângsteres e sua estética na fotografia influenciada pela sombras utilizadas nos trabalhos dos cineastas expressionistas europeus (Billy Wilder era um imigrante da Polônia), o estilo noir de Pacto de Sangue, juntamente com os musicais e o western, pode ser considerado um gênero criado e sedimentado graças ao cinema norte-americano.
Filmes como M O Vampiro de Dusselfdorf e Relíquia Macabram já apresentavam elementos nitidamente noir, mas a fórmula, quase obrigatória, para se fazer um filme noir levando em consideração todo o conjunto se deu a partir do exemplo de Pacto de Sangue. Sua cartilha foi seguida a risca por aqueles cineastas que quiseram trilhar o caminho deste subgênero: mulheres fatais, ambientes com pouca luz e penumbras, diálogos com duplo sentido, crimes, traições, investigações e reviravoltas. Poucos trabalhos, contudo, deixaram uma impressão tão forte como a que foi causada pelo filme de Wilder que além do pioneirismo em conceber imagens de impacto inovador teve que superar as dificuldades de realizar um filme que estava sob a ameaça de ser vetado pelo comitê de censura da época devido aos temas considerados polêmicos que ele abordava.
Em Pacto de Sangue, a maestria de Billy Wilder se torna clara nas sutilezas dos textos das personagens, na forma como faz os enquadramentos, monta as cenas e dirige os atores.
Logo no início do filme o vendedor de seguros Walter Neff, interpretado pelo ator Fred MacMarray define a essência da problemática do filme noir justificando suas ações pelo fato de querer “o dinheiro e a mulher”. Ele mesmo faz a narração em off (outra característica constante nos filmes noir) e através de seus olhos, seu cinismo, seu sarcasmo e, acima de tudo, seu arrependimento, a história vai sendo revelada e os personagens são apresentados.
Barbara Stanwyck embora temerosa com sua imagem em interpretar uma adúltera assassina num período de moralismo imposto, aceita o papel oferecido pelo diretor e faz da personagem Phyllis uma das mais marcantes de sua carreira. No instante em que ela aparece no alto da escada de sua casa, trajando apenas uma toalha e usando uma peruca loira notoriamente vagabunda, o expectador já percebe uma identidade entre aquele acessório e a sua dona. Outra cena com força interpretativa relevante é a que é protagonizada por Stanwyck quando a câmera, elegantemente, se distrai da ação do assassinato do marido de Phyllis e faz um close up fechado apenas em seu rosto. A face que se vê é de uma euforia contida. Uma satisfação gélida inunda o semblante da Sra. Dietricson demonstrando uma certeza de sucesso de seus planos.
Não se pode deixar de mencionar também Edward G. Robinson como o ultra-desconfiado gerente Keyes, chefe de Neff na seguradora. Roubando a atenção em suas sequências, ele é um espetáculo à parte dando ao seu personagem uma faceta sério-cômica irresistível. Para nos convencer disso precisamos apenas observar o desempenho vigoroso que ele nos oferece ao explicar ao presidente da empresa as várias estatísticas e as diversas classificações dos tipos de suicídio ou quando ele cita “o pequeno homem que mora dentro dele” sempre que algo não lhe convence.
Para desviar a atenção dos censores, Billy Wilder teve o cuidado em compor as cenas mais ousadas de forma simbólica sem deixá-las explícitas, mas subentendidas ao expectador atento. Um exemplo é quando Phylis e Neff estão se beijando no apartamento é feito um corte, somos conduzidos para uma outra cena, há um outro corte e voltamos para a sala do apartamento onde está o casal. Neste instante Phylis está pondo batom e o casaco e Neff encontra-se deitado no sofá fumando um cigarro numa indicação que mantiveram relações sexuais naquele momento.
Fora o óbvio, Pacto de Sangue é um filme feito de detalhes. Todos os elementos são utilizados na narratividade como indicadores de um estado ou uma condição. Um olhar apurado pode recuperar sempre novas informações cada vez que o assista, aumentando o valor e a riqueza da obra.
"O gabinete do Dr. Caligari" por Paula Riff
O Gabinete do Dr Caligari(1920) inovou ao relacionar-se com uma escola que já despontava em outros âmbitos artísticos, qual seja o expressionismo.
Entender as características dessa escola e o contexto histórico em que surgiu é bastante importante para entender a influência que esse movimento artístico exerceu sobre “Caligari”, e a partir do sucesso deste, em vários outros filmes.
A origem das características do expressionismo, ao contrário do que muitos pensam, não surgiu através da arte alemã, porém, foi nessa nação que encontrou maior importância, devido à atmosfera de desilusão e pessimismo que rondava o país pós-guerra.
A primeira arte a demonstrar características do expressionismo foi a pintura, com formas distorcidas e cores sombrias tendo como obra mais famosa “O Grito” do norueguês Edvard Munch exposto pela primeira vez em 1893.
O movimento expressionista propunha exteriorizar o olhar subjetivo do homem, traduzindo visualmente os conflitos emocionais. O objetivo era revolucionar o modo de mostrar a arte. Revolucionou, sem dúvidas, a forma do cinema.
O cinema alemão adquiriu e adaptou as características do movimento expressionista o que resultou em sua obra prima: O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI.
Tal como a escola expressionista, o filme não aborda os temas sob a ótica de uma realidade concreta, percebe-se isso através da deformidade dos cenários, no contraste de luzes e sombras e da maquiagem dos personagens.
O cenário se destaca no filme não apenas por sua originalidade, mas também porque faz parte da própria narrativa do filme.
Ao “descobrirmos” que toda a história contada no filme não passava de um devaneio do protagonista, poderíamos presumir que o cenário faria parte da visão sentimental do narrador diegético, como, aliás, propõe o movimento expressionista. Porém, mesmo ao final da narrativa, na última sequência do filme em que há a apresentação do local em que o protagonista se encontrava contando a história, ainda observamos as mesmas características dos cenários anteriores. Loucura ou Realidade? Estaria o protagonista narrando um delírio num sanatório ou o perverso Dr. Caligari conseguiu enganar a todos mais uma vez? Pois se fosse mesmo uma ilusão, porque o cenário não ficou mais real após o término da narrativa? Ou será que o cenário foi utilizado apenas como um efeito estético e o protagonista realmente é louco?
Após mudar de opinião diversas vezes a medida que revia o filme, acredito que o cenário é mais do que mero instrumento decorativo, até por que, se não fosse por esse elemento, esses questionamentos não existiriam. Sendo assim, o cenário, executa perfeitamente o seu propósito, pois além de passar ao espectador toda uma sensação de aflição e desconforto, contribui como elemento fundamental para confirmar a ambigüidade do desfecho narrativo do filme.
O misterioso e o perverso foram temáticas bastante abordadas no cinema expressionista alemão, e tal interesse perdura, até hoje, nos filmes de terror e suspense que não coincidentemente utilizam outros aspectos parecidos do cinema expressionista como a utilização de luzes e sombras para dar a mesma aparência ameaçadora.
Há também diretores atuais que utilizam além desses aspectos supracitados outros recursos mais evidentes como a maquiagem e o cenário, assim como é o caso do diretor hollywoodiano Tim Burton. Tais aspectos não são utilizados com mesma finalidade anteriormente empregada no cinema expressionista, no caso do diretor Tim Burton, são utilizadas apenas com um intuito estético, ainda assim esse uso não deixa de ser uma clara referência ao cinema expressionista.
Tais constatações são importantes, pois confirmam a importância do filme O Gabinete do Dr Caligari e do cinema expressionista alemão que, mesmo após seu declínio em 1924, deixou as suas marcas na história do cinema e continua a influenciar a maneira de fazer o cinema até os dias de hoje.
´"Pacto de Sangue" por Tássia Sobreira de Melo
O filme Pacto de Sangue é um representante do Noir. Este estilo compreende os filmes produzidos nos Estados Unidos entre 1930 ate a década de 50, possuindo elementos peculiares em sua elaboração. É possível perceber a grande influência do Expressionismo Alemão neste estilo - uma vez que grande parte dos diretores desse gênero são europeus que migraram para os Estados Unidos fugindo do Nazismo - no que se refere à distorção claro-escuro que remete à atmosfera de suspense e mistério a qual é um elemento fundamental do estilo. O Noir apresenta uma estrutura básica característica que podemos elucidar concomitantemente ao contarmos a estória dirigida por Billy Wilder.
A estória é contada pelo protagonista, a narrativa é confessional, Walton Neff é um agente de seguros que se apaixona pela mulher casada a qual ele oferece seguro. Esta, Phyllis Dietrichson, no entanto, também se apaixona e o convence a participar de um plano para enganar o marido fazendo-o assinar um seguro, matá-lo e assim ficarem com o dinheiro.
Percebe-se que a femme fatale envolve o protagonista numa espécie de obsessão amorosa, desta forma é ela quem conduz as atitudes de Neff através do desejo.
Por seu amor, Neff prepara tudo e segue com o plano até o final. Nota-se aí mais características do estilo como a falta de moralidade do protagonista, sua posição de anti-herói e a sua capacidade de matar friamente para atingir seu objetivo.
Entretanto, após ter matado o marido de sua amante, Neff se vê em problemas, pois todos tentam encontrar o culpado pelo crime. O assassinato torna-se, então, o centro do filme, o que elucida a personalidade psicopata e manipuladora e o senso de fatalismo, mais elementos do estilo, que se instauram sobre a personagem Phyllis Dietrichson, ponto que faz pensar sobre mais uma possível influência do Expressionismo Alemão.
Vendo-se sem saída por conta da proximidade da descoberta do crime e pelo caráter desleal e ambíguo de Phyllis, Neff decide ele mesmo resolver toda a questão, e decide matar sua amada, que também se preparara para matá-lo, para sua surpresa. Assim, numa cena tensa o auge do filme se desenrola: Neff, num momento de descuido, é atingido por Phyllis no braço, mas consegue matá-la no final.
Termina trágico, portanto, o envolvimento doentio do protagonista moralmente fraco com a femme fatale manipuladora.
“M de Magnífico!” Por Cleiton Costa
Não existe maior crime do que aquele praticado contra os inocentes. Esse é um pensamento bem comum para quem tem pelo menos um pingo de senso moral. Toda fragilidade e incapacidade de se defender dessas vítimas tornam repugnantes esses atos dentro de qualquer sociedade civilizada. Mas quando submetidos e sufocados por esses crimes, uma sociedade pode ficar menos civilizada, e até paranóica, diante do também paranóico desconhecido criminoso.
Essa é uma das temáticas centrais do grande clássico: “M- O Vampiro de Düsseldorf” (Fritz Lang, Alemanha, 1931), onde o mestre Fritz Lang nos envolve em trama muito bem elaborada que narra um serial killer de crianças na cidade de Düsseldorf, que foi baseada em fatos reais. Como um dos mestres do Expressionismo, Lang já vinha abordando uma temática já diferenciada na sua obra, saindo um pouco daquela visão monstruosa dos patriotas companheiros de vanguarda. Em “Dr. Mabuse- O Jogador “(1922) já se encontra certo desbravamento no campo da psicanálise e da esquizofrenia. No incrível “Metrópolis” (1927), ele penetra em um mundo pouco explorado até então, o da Ficção Científica. Por isso, quando o Expressionismo declina no inicio da década de 30, Lang consegue se sair bem diante das mudanças. E uma delas foi a revolução do cinema sonoro que provocou o fim da carreira de muitos cineastas no mundo.
Nesse seu primeiro filme sonoro (M), Lang usou do som (que ainda estava em aperfeiçoamento) de uma forma tão genial que põe no bolso muita gente mergulhada na modernidade das possibilidades de hoje em dia. Ele simplesmente não usou o som como “plano de fundo”, que costuma assumir esse papel secundário no cinema, ele inovou em utilizá-lo como um elemento narrativo, além de provocar uma linda fonte de tensão paralisadora de atenção, da qual Orson Welles, Hitchcock e muitos outros iriam beber. O bater da bola da criança (futura vítima) sobre o cartaz de recompensa do assassino; o sinistro assobio do assassino enquanto caminha nas ruas, ato esse que será sua maldição; o grito da mãe chamando pela filha que ecoa no vazio das escadarias; o som dos estranhos mafiosos se aproximando gradativamente do maníaco. Uma verdadeira sinfonia da tensão e do medo.
“Depois que o filme policial abandonou o gênero ‘romance de folhetim’, precisou-se encontrar uma fórmula que tivesse condições de agradar tanto ao público cultivado quanto aos espectadores atraídos unicamente pelo lado instigante da ação. Foi assim que a psicologia criminal se introduziu no filme policial...” (Fritz Lang)
Essa é a outra grande importância dada ao M, ter sido o pai de toda a geração noir. Estilo inconfundível dos seus grandes contrastes, tema policial, femme fatale, entre outras características. Mas particularmente, vejo M superior a muitos dos seus filhos. A própria construção do filme é grandiosa. O menor detalhe é carregado de sentido. Sua estrutura narrativa não tem praticamente nenhuma falha. Além disso, o filme possui toda uma camada gradual de críticas, das mais subliminares às mais explícitas, que tornam suas deduções bem saborosas. Referencias ao nazismo (caça opressora ao assassino, motivo para qual uma mulher cuspa em um policial ou até de que o maníaco seria a representação do nazismo) que estava crescendo na época, e que provocou a posterior fuga de Lang para os EUA; hipocrisia humana, como na cena do advogado mafioso do assassino que o defende afirmando que ele não é responsável por
seus atos por ser insano; entre outras possíveis visões.
Por fim, não podemos esquecer a grande atuação do ator austríaco Peter Lorre, que magnificamente interpreta o assassino de crianças. Ele foi uma peça chave na trama, no início percebemos pequenos detalhes de sua perturbação mental em seus atos que aumenta com o passar do tempo. Mas a cena inesquecível é a do seu julgamento pelos bandidos, em que ele aflora sua insanidade de uma forma incrível e verossímil, revelando finalmente a mente do monstro em forma de pessoa. Sua loucura, perversão e covardia ficam marcadas na mente de quem vê aqueles olhos esbugalhados e doentes.
“Pacto de Sangue” por Paulo de Sá
O termo Cinema Noir surgiu na década de 1940, após a Segunda Guerra Mundial, sendo atribuído a filmes policiais, retratados em ambientes marginalizados ou típicos subúrbios. A violência, corrupção e desonestidade dominam a cena, se destacam em relação a vários outros aspectos fílmicos. Nos filmes correspondentes a tal gênero, existem outras características marcantes: a trama policial, sendo sempre narrada em ritmo de suspense, investigativo, misterioso; a presença de um personagem representando a femme fatale, ou seja, a mulher provocante, charmosa e sedutora que conquista todos os homens nos quais se insere o “mocinho”, que mais faz papel de um anti-herói que de mocinho; a história “ilegal” na qual a trama é desenvolvida, bombardeando o espectador com corrupção e desonestidade; personagens certamente ambíguos, ora atuando em prol do bem, ora atuando do lado mal e desonesto da história.
Em Pacto de Sangue, filme de Billy Wilder, a narrativa gira em torno de um agente de seguros, Walter Neff, personagem de Fred MacMurray, que é seduzido pela mulher de um dos seus clientes, Phyllis Dietrickson, representada por Bárbara Stanwyck. A figura da femme fatale se encontra encaixada perfeitamente em Phyllis, a qual usando de toda sua beleza e astúcia induz Neff e faz com que ele a ajude no assassinato de seu marido, cliente do próprio Neff. O crime deve ser feito com extrema cautela para que pareça um acidente e, consequentemente, nem a polícia nem a empresa de seguros desconfie de um assassinato. Como todo trágico andamento de um filme noir o anti-herói, mostrado na figura do mocinho corrompido, e a femme fatale acabam encontrando vários problemas para esconder o crime, o qual é descoberto no final da trama pelo chefe de Neff.
Diante de um grande clássico do Cinema Noir é preciso citar alguns aspectos particulares de Pacto de Sangue. É perceptível, por exemplo, a imponência de Neff no começo do filme: para começar ele o personagem mais alto da história, já propondo uma idéia de superioridade em relação aos outros homens; é também encantador, charmoso e bem sucedido no trabalho; começa, então, a seduzir a mulher de seu cliente (na verdade acha que está seduzindo, porém isso apenas é revelado no final da trama). Após tomar conhecimento da proposta de Phyllis, Neff acaba se transformando na figura paternal e o principal articulador do plano, sendo ele quem programa o assassinato nos mínimos detalhes, tenta ao máximo acalmar Phyllis, dirige e conduz todos os passos desta última. Quando o assassinato se torna alvo de suspeita por parte da empresa de seguros, porém, a figura da femme fatale, retratada em Phyllis, acaba tomando uma posição superior a de Neff, saindo da posição de mocinha indefesa e começando a disputar com Neff a saída desta tão grave suspeita. Este último, por sua vez, a partir desse momento da narrativa, começa a fraquejar, se torna uma pessoa nervosa, com sentimento de culpa, medrosa, sempre achando que algo vai acontecer, o que faz com que ele saia da posição de imponência que antes se encontrava.
A iluminação e a saturação ajudam a criar o clima que o Cinema Noir propõe: cheio de mistério e suspense. O contraste visual (entre a cor preta e a cor branca) é intenso durante todo o filme, diminuindo um pouco apenas nas cenas menos macabras ou perversas, como, por exemplo, quando Lola, enteada de Phyllis, está em cena. Lola é o personagem que representa a ingenuidade, honestidade e a esperança de um desfecho feliz para a história, sendo, porém, mostrada de forma incrivelmente impotente diante de todas aquelas articulações corruptas e ilegais. A presença de fumaça no ar, originada de cigarros e charutos, passa a idéia de um ambiente poluído, tóxico, fazendo com que o espectador tenha a sensação de sufoco, algo insuportável para qualquer pessoa.
Também é válido salientar a presença da fotografia dando mais sentido ao filme e ajudando no andamento da narrativa. Para citar um ótimo exemplo há a primeira seqüência dentro da casa de Phyllis, quando Neff vai visitar seu cliente e acaba, ocasionalmente, conversando com a mulher do mesmo (a qual começa a pôr em prática seu grande plano): Bárbara Stanwyck, no seu personagem de Phyllis, do alto de uma escada é filmada do chão, ou seja, de baixo para cima, enquanto Fred MacMurray, como Neff, está no chão e é filmado de cima para baixo, revelando quem realmente está seduzindo quem, ou seja, quem realmente está no comando da situação.
São várias as características particulares e excelentes existentes em Pacto de Sangue, fazendo com que esse clássico e seus realizadores se tornassem grandes contribuintes para o desenvolvimento do Cinema Noir e, de forma geral, do cinema mundial.
"Crepúsculo dos Deuses" por Paula Riff
A definição do gênero noir é bastante problemática. Tanto o é que alguns teóricos não acreditam se quer que ele exista. Isso acontece por se tratar de um gênero que não foi composto de forma consciente, não houve a intenção na época de formar qualquer tipo de estilo cinematográfico como foi o caso do expressionismo alemão. O gênero noir foi estabelecido após ter entrado em desuso e foi reconhecido por pessoas alheias as produções desses filmes. Para diferenciar um filme noir de um de outro diferente do estilo era necessário prestar atenção em algumas características presentes, teoricamente, em todos os filmes noir. Tais características estão contidas no filme Crepúsculo dos Deuses (1950).
O clima de pessimismo e a escuridão estão presentes no filme assim como o confronto entre protagonistas de sexo oposto. A figura da mulher fatal é personificada por Norma Desmond, embora tenha algumas diferenças quanto à sensualidade e desejo de matar de Phyllis Dietrichson de Pacto de Sangue e da maioria das mulheres fatais do estilo noir. A principio, o personagem principal narra a história em off como se fosse alheio a ela, porém, ao longo do filme, percebemos que trata-se de uma narrativa pessoal póstuma. Assim como em Pacto de Sangue (1944), o protagonista começa a contar a história pelo final e volta no tempo para explicar como o fato exposto aconteceu. Sendo assim, dá para se notar uma alinearidade temporal que não é uma característica dos filmes noir, mas se torna uma característica em comum de ambos os filmes de Billy Wilder.
Quanto ao tema o filme é variado. “Crepúsculo dos Deuses” fala sobre manipulação, egocentrismo, loucura, dependência e até o modo de fazer filmes.
A Deusa do título em português é Norma Desmond, que consegue, sem perceber, o seu papel principal nessa obra brilhante de Billy Wilder.
O filme narra a história de Joe Gillis, roteirista cheio de dívidas que fugindo dos seus cobradores conhece a atriz de cinema mudo, Norma Desmond.
Muito famosa no passado, Norma, que agora apodrecia junto com sua decadente mansão, viu em Joe a esperança de um retorno as telas. Reclusa em sua solidão e sua nostalgia, tendo apenas como estimulo cartas de fãs que o seu fiel mordomo Max falsificava em segredo, Norma começa vê além de esperança, um companheiro em Joe. Ao longo do filme, notamos que não é qualquer companheiro que norma procura, pois se o fosse estaria essa necessidade satisfeita com a companhia do seu ex-marido e mordomo Max. Norma procurava um companheiro jovem, juventude que Norma busca em todos os aspectos.
Refém de sua situação financeira, acomodado pelas regalias que a grande quantidade de dinheiro proporcionava e manipulado psicologicamente com as tentativas de suicídio de Norma, Gillis apesar de sentir-se envergonhado de sua condição deixa-se controlar pelo egocentrismo de Norma. O controle exercido sobre o protagonista é confirmado com a sequência em que a recente paixão de Gills, Betty Schaefer, sai da mansão. Em primeiro plano e filmado em contra-plongé Joe está na porta da casa, enquanto no segundo plano e em um patamar superior em cima da escada Norma observa todos os seus movimentos como um manipulador de marionetes.
Norma não quer voltar a atuar, mas sim voltar ao tempo em que era uma jovem estrela. Em busca dessa ilusão Norma visita o estúdio atrás do suposto diretor do seu filme. E é nessa seqüencia que podemos notar o atraso e desprezo da protagonista pelo cinema falado, demonstrado no plano em que sentada na cadeira do diretor afasta um microfone que estava suspenso perto de sua cabeça. Logo após isso, há outro plano em que notamos a satisfação da protagonista em estar literalmente sobre os holofotes e de ser reconhecida por seus antigos companheiros de trabalho.
Ao longo do filme, Norma parece ter controle sobre todos, menos sobre ela própria. Devido a sua instabilidade emocional ela é protegida da realidade por seu mordomo que esconde a verdade sobre a falha em sua tentativa de retornar ao estrelato.
A dúvida que paira até o final do filme é se a própria Norma irá matar o protagonista ou se o seu fiel mordomo o fará para protegê-la.
Quando a ilusão de Norma se desfaz, ela perde o controle total e se recolhe a um mundo de fantasia em que seu sonho é finalmente realizado, está em evidencia e filmando novamente. A atenção voltada para a protagonista coincide com a realidade do filme, ela está novamente nas noticias, mas não pelo motivo que ela desejava.
No mais é importante ressaltar que o enredo vai muito além desse conflito entre os protagonistas. Através de uma metalinguagem rica e complexa a história critica o modo que Hollywood trata seus antigos funcionários incluindo diretores e atores.
Os paralelismos são inconfundíveis. Os personagens retratados por alguns atores estão tão perto de suas personalidades que não é de se impressionar a confusão entre realidade e ficção.
Erich von Stroheim interpretou o mordomo e descobridor de Norma, dirigindo seus filmes em sua época áurea. Gloria Swanson a atriz que interpreta Norma Desmond, por sua vez, atuou no cinema mudo desde 1915. Coincidentemente ou não, Erich dirigiu Gloria em "Queen Kelly", um filme mudo de 1928. Tal situação faz com que o filme se torne mais interessante e sua crítica mais verídica. Pois embora a atriz Gloria nunca tenha parado de atuar, em sua filmografia percebe-se uma lacuna de 9 anos entre o último filme que ela havia atuado e o próprio filme Crepúsculo dos Deuses.
É essa crítica ao modo Hollywoodiano de fazer filmes e a complexidade emocional de Norma Desmond que faz com que esse filme, apesar de não ser pioneiro, se destaque em relação aos outros filmes noir e se consagre como a obra mais brilhante de Billy Wilder.
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"Se Bette Davis flertasse comigo eu fugia pro inferno" por Gustavo Ferreira
Satan Met a Lady. She’s probably his mother. Esse foi o primeiro pensamento que minha cabeça cheia de cabelos brancos e experiência elaborou quando eu descobri que essa Lady do título é a Bette Davis. Entenda-se: o último filme com a Bette Davis que eu tinha visto era Wathever Happened to Baby Jane, que tem um título fantástico, um enredo fantástico, atuações fantásticas e em que a Bette Davis continua feia.
Ah, e eu nunca erro! O título é fantástico, o enredo é bom, as atuações são, ehm, ok, e a Bette Davis continua feia (talvez mais pra uma irmã que pra mãe, no entanto). Deus, como ela era feia! Tudo bem, no entanto, porque ela também sabia ser cínica.
Satan met a lady é a segunda adaptação do livro O Falcão Maltês, de Dashiell Hammett, para o cinema, e a primeira com som. Talvez por isso aproveite muito melhor as falas geniais de Sam Spade, que nesse filme, Deus sabe por que, se chama Ted Shane (sabe Deus, também, e todos nós, que rezamos muito e já fomos iluminados, que Spade é um nome muito mais másculo que Shane).
Obviamente a alteração nos nomes dos personagens não é o único defeito do filme, nem o maior, e sequer seria defeito se Sam Spade se chamasse Max Power ou Brillante Mendoza, por exemplo. A ausência de Bogart é. Bette Davis é suficiente para o papel, e Mary Wilson é a melhor secretária-inocente do mundo, mas Warren Williams não tem a neutralidade de Bogart estampada na cara. Ele é óbvio em seus doublecrossings, porque ele tem cara de doublecrosser com aquele bigodinho ralo (o Spade do livro, na verdade, é bem mais parecido com o de Warren Williams que com o de Bogart, mas Bogart fica melhor que qualquer personagem de qualquer livro quando ele é ele mesmo na tela).
Mas basta Shane abrir a boca uma vez e nós notamos o gênio que foi Hammett, e como é impossível estragar qualquer obra sua, mesmo que o falcão seja substituído por uma corneta. Por exemplo, quando seu parceiro Ames é assassinado num cemitério, sua demonstração de piedade não vai além de “Poor dear old Ames. The first time he ever did anything in the appropriate place.” Devo ressaltar que essa fala não está no livro de Hammett, que pode ser baixado ilegalmente em português no 4shared.com, e que nenhum Spade até hoje teve feições tão cheias de Vs quando o do livro (esses Vs justificariam o Satan do título do filme, já que Sam Spade, graças a eles, looked rather pleasantly like a blond Satan, nas palavras do autor. Também não me lembro de um Spade louro, mas certamente Leonardo Di Caprio não seria melhor que Bogart.
Obviamente esse filme não é melhor que O Falcão Maltês, e a corneta não é um bom substituto pro falcão, e Warren Williams não é tão bom quanto Bogart, mas esse filme, por ser de 1936, talvez, tem uma vantagem comparativa em relação ao mais genial de todos os film-noir de todos os tempos: ele não é exatamente um film-noir (embora eu admita que isso não é propriamente uma vantagem, já que noir é o gênero mais likeable do cinema. Está mais pra um álibi – “não sou tão bom quanto ele, mas também nem sou do mesmo gênero genial).
A proximidade com filmes da Screwball Comedy possibilitaram passagens memoráveis, como o diálogo entre Travers e Shane logo após o inglês revistar o apartamento do detetive. Ou o pedido de desculpas de Travers por trancar Miss Murgatroyd (Ive Archer no livro, Mary Wilson na vida real) no ármário e o fato de ela aceitar as desculpas e ainda chamá-lo de polido por dar-lhe flores como atonement.
Quer dizer, além de rirmos com o cinismo e os witticisms, como em There’s no place I’d rather see you than in the graveyard, a gente ainda ri (e mais alto) de gestos exagerados, vozes excessivamente agudas e situações inusitadas que quebram o noir do filme e dão a ele um ar mais leve, quase como uma comédia (não é a toa que Satan Met a Lady é considerado por aí como um filme proto-noir, não noir itself, e que o IMDB o classifica como parte dos gêneros comedy/drama/mistery.
Para finalizar (porque sou uma dessas pessoas que dão a esperança de que um dia vão parar de falar, especialmente quando falam tantas coisas aleatórias, como agora, por exemplo), digo que Bette Davis era uma idiota. Ela teve coragem de dizer que Satan Met a Lady foi o pior filme que ela fez, quando todos sabemos que Wicked Stepmother é consideravelmente inferior (embora não mereça o 2,8 do IMDB, c’mon, guys, é A MADRASTA, vocês nunca viram Sessão da Tarde?), apesar de falas como Vouyerism is a terrible affliction e You didn’t wake me up. I was reading a sexy novel.
(Considerando, no entanto, o talento dela pra escolher papéis interessantes, talvez esse seja, realmente um dos piores filmes que ela fez. Mas isso também não parece ser um grande defeito, vá lá).
Nota: três diabinhos e um tridente, de um Satanás possível.
"Does Audrey sing?" por Annyela Rocha
Quem disse que Audrey Hepburn não sabe cantar? No famosíssimo MyFair Lady, a atriz é dublada por Marni Nixon (que sempre compensava a falta de voz nas mocinhas de Hollywood). Apesar disso, numa produção anterior, de 1957, Funny Face, Audrey canta por si mesma.
Ela não é assim uma Julie Andrews, mas canta. Falando em Julie, ela interpretava esse musical na Broadway e foi até cogitada para o papel, mas se recusou a fazer um teste de elenco. E, falando do musical, o filme pouco se inspirou na peça, mantendo realmente iguais apenas o título e quatro canções.
Funny Face no Brasil é Cinderela em Paris. No filme, Maggie Prescott, interpretada por Key Thompson, é uma editora da revista de moda na revista Quality. Maggie está à procura de um novo rosto para sua revista, alguém que seja bela e intelectual. Por sugestão do fotógrafo da revista, ela contrata Jo Stockton, uma vendedora que trabalha numa livraria.
O fotógrafo é ninguém menos que Fred Astaire, no fim de sua carreira em musicais. Ele interpreta Dick Avery e seu personagem é o par romântico de Audrey Hepburn. Ela é quem tem o “rosto engraçado” que encanta a todos da Quality. Trabalhando numa livraria pequena, Jo entra em desespero quando o local é invadido pela produção da revista para uma sessão de fotos.
A personagem de Audrey segue uma seita filosófica que afirma ser a empatia a base das coisas. Jo acredita que o mundo da moda é altamente obsoleto e, quando é descoberta por Maggie e Dick, reluta a aceitar o convite para ser o novo rosto da Quality. O fotógrafo a convence, contando que sendo modelo para essa ocasião eles viajarão à Paris, e é em Paris que está o filósofo fundador da corrente seguida por Jo Stockton.
Chegando a Paris, Maggie, Dick e Jo passeiam pela cidade, cada um admirando sua parte preferida da cidade. Apesar de Fred Astaire ser bem mais velho que Audrey, dizem por aí que ela exigia que o ator fizesse seu par no filme. Os dois começam a desenrolar o romance na cidade-luz e Jo acaba gostando do mundo fashion, mesmo após uma breve confusão depois de encontrar o seu filósofo predileto.
De uma forma doce, o filme de Stanley Donen é um romance leve que, se fosse dos dias de hoje, seria recomendado como “um filme para toda família”. As canções, feitas por Adolph Deutsch, George Gershwin e Ira Gershwin, fazem com que Audrey cante na medida certa, deixando com que Key Thompson e Fred Astaire cantem mais quando necessário. Mas no fim das contas, a bela Audrey canta sim, e muito bem.
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"Giant Robot Kills Another Thousand, Says the Naked Female Samurai" por Gustavo Ferreira
Como todos sabem, Wilson Simonal é o maior intérprete da história da música brasileira, e um close second da música mundial, pertinho do Sinatra (talvez eu esteja empolgado porque quero ver o documentário sobre ele, que perdi quando passou no cinema). Por isso que eu me sinto à vontade pra citá-lo em relação a esse clássico que é o filme Zéro de conduite: Jeunes diables au collège e, especialmente, a seu diretor, algum francês, depois eu lembro o nome dele, que também nem é tão importante: NEM VEM DE GARFO QUE HOJE É DIA DE SOPA, meu bem.
De que me importa se seus personagens sobem no telhado, se o incêndio é no porão? Se eles acham que são malvados, revolucionários, anarquistas, que se pode dizer do cabelo de John Travolta em Grease? Mais: que dizer das roupas de Olívia Newton-John, do casaco vermelho (em preto e branco) de James Dean, da ferrari de Ferris? Grease tem mais maldade em um verso que todos os alunos do colégio interno do seu filme, Jean Vigo! Cada versão em forró de You’re the one that I want tem mais colhões que seus alunos mequetrefes, ora bolas!
Eu sei que you don’t wanna hear all the ‘orny details, mas sou um resenhista muito independente e vou contar mesmo assim, sem medo de perder a audiência (sou uma espécie de João Gordo da crítica cinematográfica): eu vi UM PINTO no filme. Quantos peitos você viu, você me pergunta, meio assombrado com essa revelação e temendo pelo pior. Como se franceses mostrassem seios assim, sem mais nem menos. Nem mulheres eu vi, Deus me acuda!²
Eu sei que muita gente lamenta por aí a sua morte precoce, Vigo, que te impossibilitou de continuar com uma carreira de muitos filmes – foram só quatro, tadinho. Mas o que eu lamento de verdade é que você não tenha vivido o bastante pra lamentar o que fez, pra pedir desculpas à humanidade por ter feito besteira e por estimular o cinema francês a gerar coisas como Godard. Se me permite um chute, acho que você não era má pessoa. Talvez aconselhasse Godard a largar o cinema e fazer crochê ou adestrar focas, profissões da mais alta dignidade, e talvez o impedisse de matar o tripé, esse elemento que você ainda utilizava com algum amor, nos poupando de tonturas e sofrimento.
Sobre o filme, especificamente, é interessante observar a necessidade de Jean Vigo de mostrar pra todo mundo que ele é filho de anarquista, e que – u-hul! – ele usa um TRAUMA DE INFÂNCIA como tema. Algo como “as crianças têm que mandar no mundo porque meu pai morreu” é a analogia mais freqüente no filme, e provavelmente a pior. É um fato incômodo que as pessoas realmente achem que o fato de o filme ser uma homenagem indireta ao pai dele seja, em si, algo bonito. É, no máximo, tão bonito quanto a Carla Peres posar nua porque gosta de Nutella. Bonito em si é o amor dele pelo pai, o que não justifica que ele faça um filme ruim e seja elogiado por aí.
Outro grande problema desse filme já tão problemático é o gênero. É o tipo de filme que passa uma mensagem, se analisada, muito divertida: crianças tomando conta de um internato/orfanato e crucificando um adulto? I’m all in for it. Tratar uma comédia como algo poético? Stop the shit and die, Vigo. Oh, you did it already. Além disso, Vigo resolveu terminar o filme dois minutos depois de começar a ação, e quinze horas de simbolismos e surrealismo bobos depois do início do filme (e a ação poderia até ser interessante, como não?).
Eu já disse várias vezes – e repito quantas forem necessárias – que todo o gênio de Salvador Dali estava na comédia. Ele tem um quadro chamado Natureza Morta-Viva e ninguém relaciona isso aos filmes de zumbi? Gimme a break, willya? Parem com toda a solenidade se querem ser moderninhos, senhores franceses, ou rompam com a modernidade se querem ser solenes. O filme de Vigo, graças a esse tom meio solene dado às brincadeiras (e quando ele tenta brincar ele não sabe, fica dizendo que a bola é dele e que todos têm que jogar do seu jeito), é tão ruim quanto qualquer outro filme francês (a não ser pelo fato de que Jean Vigo ainda é do tempo em que os descendentes de Obelix usavam tripés, e a imagem ficava fixa, bonitinha). É triste observar que desperdício foi Vigo.
Porque ele era um bom diretor, não duvido. Algumas cenas são realmente agradáveis, quase bonitas, mas ele desperdiçou qualquer talento que tinha mostrando pintos (talvez seja a hora de revelar que o pinto nem foi tão horrivelmente explícito assim – era um pinto de um menino pequeno, inocente, exposto de longe, embora, claro, um pinto seja sempre um pinto) e sendo mais solene que a rainha da Inglaterra em jantar de gala. Gente, Shakespeare viveu no século XVI e já fazia sucesso com piadas, por que mudar a fórmula? Até Hamlet é leve em alguns momentos, pelo amor de Santa Joana! Até Titus Andronicus !
Enfim, como todas as vezes em que vejo alguém sendo tão não engraçado – pior: tão propositalmente não engraçado – não consigo terminar o filme sem imaginar que, a qualquer momento, um ninja vai aparecer, liderando uma multidão de zumbis, e destruir o mundo. Ou um dos meninos vai encontrar um mapa do tesouro e todos se tornarão piratas, sendo um deles caolho e outro perneta. Ou ainda que eles são todos super-sentai, e que juntos formam um andróide assassino gigante. Mas nada nunca acontece de bom em filmes franceses, e eu fico sempre ali, no cantinho da sala, querendo dormir.
NOTAS:
1. O título deste texto contém quatro formas básicas de fazer um filme interessante, podendo ser misturadas de diversas formas. A minha favorita é essa que já usei, e ela está registrada na Biblioteca Nacional. Se tivesse utilizado qualquer uma delas em Zero de Conduta Vigo seria um diretor mais interessante.
2. Nota completamente aleatória em crítica moral e conselho aos franceses: quando vocês tiverem a oportunidade de mostrar a Mônica Bellucci nua, franceses, mostrem a Mônica Bellucci nua. Por favor, não ocultem os seios dela em cenas de estupro – e, especialmente, não façam isso enquanto exibem pintos digitais. É constrangedor e negativo pra sua imagem, and more so se considerarmos que o ator era provavelmente castrado, o que os levou a inventar um pinto pra ele (refiro-me a Irréversibile, ignorante!).
"Amores de um dia (Um dia em Nova York)" por Annyela Rocha
Três marinheiros chegam à cidade de Nova York e têm apenas 24 horas para aproveitar a visita. Acabam aproveitando melhor as nova-iorquinas. Quando descem do navio, já cantam animados que New York, New York is a wonderful town, música tema de Um dia em Nova York, produção de 1949. O musical é dirigido por Stanley Donen e Gene Kelly, e este segundo também atua no filme.
Além de Gene Kelly, os marinheiros são interpretados por Frank Sinatra e Jules Munshin. Frank é Chip, Jules é Ozzie e Gene Kelly é Gabey. Chip tem um velho guia turístico da cidade e pretende visitar todos os pontos turísticos recomendados por seu avô. No entanto, quando chegam ao metrô, eles veem um cartaz falando sobre a “miss-catraca” do mês. Gabey se encanta e decide procurar a garota.
Após encontrá-la na estação em que descem do metrô, continuam atrás dela à bordo de um táxi dirigido por uma mulher, Hildy Esterhazy, interpretada por Betty Garrett. Hildy se apaixona por Chip, que de início resiste às investidas da moça. Procurando a miss-catraca num museu, Ozzie encontra uma antropóloga, Claire, interpretada por Ann Miller. Melhor dizendo, é encontrado por ela, já que Claire percebe que o rapaz se parece com um homem pré-histórico. Antes de irem embora do museu, Ozzie derruba um fóssil de dinossauro que estava montado no museu. Além disso, o táxi de Hildy já deveria ter sido entregue a companhia. Por essas duas razões, os marinheiros e as duas moças começam a ser perseguidos pela polícia.
Para achar Ivy Smith, a miss-catraca, interpretada por Vera-Ellen, os cinco resolvem se separar e os dois casais deixam Gabey sozinho. Previsivelmente, os casais preferem ficar juntos a procurar por Ivy. Ainda assim, Gabey encontra a moça em sua aula de dança. Ele acredita que ser miss-catraca é algo muito importante, e a garota mantém a mentira, fazendo-o acreditar que ela é muito ocupada e procurada por essa razão.
Nessa parte do filme, fica claro que a garota não é da capital, como pensa Gabey, mas da mesma pequena cidade que ele vem. À noite, os três casais se reúnem no topo do Empire State e vão juntos aproveitar as últimas horas dos marinheiros na cidade. Ivy tem que ir embora mais cedo, deixando Gabey desconsolado. Após um encontro mal arranjado com uma amiga de Hildy, Gabey continua acreditando que Ivy é a mulher de sua vida. Numa sequência bem metafórica, Gabey vê um cartaz de uma peça chamada “Um dia em Nova York”, onde todo o filme é resumido através de uma dança.
A dança, por sinal, é o ponto mais forte desse filme. As coreografias são, em alguns momentos, até melhores do que as músicas (compostas por Leonard Bernstein, Roger Edens, Betty Comden e Adolph Green). Depois dessa sequência, o grupo é finalmente alcançado pela polícia. Mas, mesmo assim, termina tudo bem, como é esperado.
O filme tem uma história bem simples e previsível, como é típico do estilo inocente dos musicais. Tem mais a ver com o teatro, onde as danças e canções poderiam ser mais bem apreciadas. Ainda assim, um musical com Gene Kelly e Frank Sinatra vale a pena ser visto.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
"Palavras ao vento de um dramalhão norte-americano" por Tiago Bacelar
Nos primeiros 20 anos do século XX, ainda na era dos filmes mudos, o cinema hollywoodiano viu nasceu um gênero chamado melodrama, o qual inicialmente se baseava no teatro popular e do vaudeville norte-americano (museus baratos, literatura burlesca, cantores populares e circos de horror). Após a Segunda Guerra Mundial, o melodrama transforma-se num drama meloso, inspirado na interpretação do clown, exagerada e antinatural.
O cinema melodramático busca trazer fáceis apelos dramáticos ligados a certo fundo musical, que leve o espectador ao choro ou ao suspense, despertando nele um sentimentalismo exagerado. O melodrama é uma espécie de antecessor das chorosas produções novelescas mexicanas. É nesse contexto que entra o especialista do gênero, o alemão Douglas Sirk. Sua produção audiovisual mais conhecida foi “Palavras ao Vento (Written on the Wind)”.
O filme, produzido em 1956, foi roteirizado por George Zuckerman, que se baseou no livro de Robert Wilder. Zuckerman fez diversas alterações em relação à obra original, tais como: o local da trama passou da Carolina do Norte para o Texas, o tabaco foi substituído pelo petróleo e diversos personagens tiveram seus nomes alterados. A fotografia de Russel Metty reflete bem os anos 50 nos Estados Unidos, com muitas influências no figurino a lá Rock, nos penteados a lá Elvis Presley e John Travolta, nos adereços femininos, nos cenários e nos carros de cores exageradas da era consumista e industrial norte-americana.
O filme “Palavras ao Vento” traz a tona o velho clichê dos amigos de infância, que após se tornarem adultos, foram tomados por sentimentos de ciúme doentio, paixão sem limites, cobiça e inveja. É mais uma experiência com os pecados capitais. Dorothy Malone (Marylee Hadley), que ganhou merecidamente o Oscar como Melhor Atriz Coadjuvante, interpreta uma personagem que representa um sentimento feminino dos anos 50 de igualdade em relação ao homem, principalmente no aspecto da conquista de uma paixão.
Podemos colocar Marylee como uma Engraçadinha, de Nelson Rodrigues, ou uma Anita, de Manoel Carlos, daquela época. É impagável a seqüência em que revela sua ninfomania, numa montagem paralela, em que dança alucinadamente, no momento da morte do pai.
Rock Hudson (Mitch Wayne), que trabalhou em oito filmes com Douglas Sirk, representa em “Palavras ao Vento” a típica rebeldia juvenil norte-americana dos anos 50, com um topete a lá John Travolta, em Embalos de Sábado à noite, ou Elvis Presley. É um jovem, disposto a socar até o “irmão” pela mulher amada, crente ser um altar de moralidade.
Lauren Bacall (Lucy Moore Hadley), em atuação medíocre no filme, interpreta o típico e batido clichê da ambição feminina em deixar de ser uma assalariada para se casar com um milionário. Depois se apaixona por Hudson, e o clichê do happy end é colocado em cena por Douglas Sirk de uma forma ambígua, em que se tratando de destino, nada é garantido.
Robert Stack (Kyle Hadley) incorpora o espírito do vilão “ciumento”, gerado pela inveja que nutre desde a infância por nunca ter o respeito do pai, da irmã e da própria sociedade. Ele é um personagem originário da tragédia grega, sublime, grotesco e hilário. Depois do sucesso de “Palavras ao Vento”, o trio Dorothy Malone - Rock Hudson - Robert Stack apareceram juntos novamente pelas mãos de Douglas Sirk, em Almas Maculadas, de 1958.
Sirk traz em seu melodrama uma verdadeira tragédia grega de ousadia. O filme começa pelo fim, esbofeteando o espectador, numa seqüência com vento forte, folhas voando e música genial de Victor Young, interpretada pelo grupo The Four Aces. A produção “Palavras ao Vento” vale a pena ser vista por suas cores exageradas, pelos rios de lágrimas derramados, pela poesia e seriedade de Sirk e pelas palavras implícitas repletas de segundas intenções.
"Gigi" (Vincent Minelli, 1958) por Douglas Deó
Gigi foi fruto tardio da produção de musicais – data de 1958, enquanto que já em 1927 o primeiro filme sonoro, The jazz singer, era um musical. Conserva diversas das características desse gênero hollywoodiano clássico: o happy end, o mocinho-galã, a heroína incorrupta, o enredo onírico – não por uma nebulosidade alinear, mas pela evolução feliz que todos desejam e, inevitavelmente, será alcançada – e a leveza da inserção do canto no universo diegético, que leva os mais severos opositores a perguntar: por que eles não falam simplesmente ao invés de cantar?
Apesar de apresentarem um conjunto de características próprias que os tornam um gênero cinematográfico, os musicais podem ser vistos como uma fatia do cinema que se utiliza mais fortemente de recursos derivados do teatro – o próprio Minnelli veio dos palcos para as telas. Assim, talvez mais importantes que as incursões da câmera são as atuações – como as ações e expressão corporal são fundamentais nesses filmes, a câmera assume uma postura mais distante na maior parte dos momentos e, mesmo quando está enquadrando um diálogo, a lente em Gigi mantém, nos casos mais próximos, um plano médio, onde é possível perceber a emoção através da expressão facial, mas sem perder de vista boa parte do restante dos atores e do meio ambiente. Mesmo no caso de Gigi, onde praticamente não há dança, os momentos cantados mantém uma distância suficiente para oferecer para o espectador uma visão da ação do personagem inserido no meio ambiente.
Mesmo que se assuma inicialmente essa posição de crer na atuação como superior à função da câmera nos musicais, há importantes recursos inerentes à linguagem cinematográfica que podem ser destacados. Se se quer explorar o meio onde ocorre a ação, tal meio pode ser utilizado como maneira de comunicar os sentidos da obra: assim, além da pompa dos ambientes que procuravam essencialmente transmitir a situação da sociedade parisiense à época, não é à toa que a casa da protagonista, alvo e correspondente do amor que o herói amadurece no desenrolar da história, é repleta de vermelho – a cor passional -, das paredes aos objetos; também não é o acaso que leva Gaston, no momento em que descobre sua paixão por Gigi, a percorrer um trajeto onde no momento em que está em maior conflito interior tem como pano de fundo a estátua de uma figura mitológica digladiando-se com um peixe enorme e empunhando um tridente e, no momento em que percebe seus sentimentos por Gigi, tem como paisagem um sereno e romântico laguinho com cisnes em doce harmonia.
Afora alguns destaques como o fato de o espectador ser interpelado por dois dos personagens – Honoré, que desempenha a função de narrador em alguns momentos da história, e o próprio Gaston, em uma das performances musicais, que canta algumas das estrofes dirigindo-se ao espectador –, as cenas do bar em que, para destacar a atenção dada a certos personagens que entram no ambiente pelos figurantes, estes últimos levantam-se e ficam estáticos, contrastando com os únicos em movimento, que são justamente os observados e um encavalamento temporal numa das vezes em que Gaston sai explosivamente da casa de Gigi; excluindo-se tais momentos, o que se encontra na história são as características que perpassam todo o cinema clássico norteamericano: a linearidade narrativa associada à montagem invisível, o fato de nunca se quebrar o eixo, etc.
Quando se fala em linguagem cinematográfica clássica, trata-se de uma maneira linear, regular e direta de se comunicar; os filmes feitos sob essa ótica em seu conjunto e na maior parte de suas sequências não carecem de uma elaboração maior por parte do espectador para serem entendidos; funcionam como meio eficaz de entretenimento para as massas. Compreende-se portanto que os musicais, surgidos no período da Depressão e em torno da segunda guerra mundial, e que buscavam passar uma mensagem de otimismo e esperança – lembrar do happy end – ao utilizarem uma linguagem que já se estabelecia como convencional, trabalharem com personagens idealizados e finais felizes e introduzirem a leveza da música no desenrolar das histórias tinham um poder de penetração significativo no grande público – poder esse que ainda hoje faz alguns espectadores suspirarem.
"Cores e músicas que encantam" por Diogo Didier
“O Mágico de Oz” (The Wizard of Oz, 1939) foi um filme que passou por diversos problemas na equipe de produção. Teve, ao todo, quatro nomes na direção, apesar de só Victor Fleming – que largou a produção para dirigir “...E o Vento Levou” – receber os créditos. O filme foi indicado a quatro categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme, mas só levou duas: Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção Original. “Over The Rainbow” é cantada até hoje e representa o sonho da protagonista, compartilhado por muitos, de um lugar melhor, um mundo melhor. É importante acentuar, ainda como aspecto da trilha sonora, o ótimo uso do leitmotiv – associação da música a um elemento da obra (personagem, grupo, etc) – que caracteriza melhor algumas cenas.
O cachorro é o melhor amigo do homem? Para a pequena Dorothy (Judy Garland), protagonista da história, é sim. A menina faz de tudo para proteger o seu animal e toda a trama se desenvolve porque a dona do terreno ao lado do qual Dorothy vive com seus tios não gosta que Totó ande por lá e quer levá-lo ao delegado para que este tome as devidas providências. Dorothy, então, foge com o cão sem que ninguém os veja. Na estrada, ela encontra um mágico charlatão que, através de algumas palavras, a convence a voltar para casa. Chegando lá, ela não consegue entrar no abrigo para se proteger do tornado que se aproximava. Assim, ela entra na casa, e a janela, que havia se soltado com o vento, bate na sua cabeça fazendo com que Dorothy desmaie.
Fica claro, assim, que tudo que acontece posteriormente faz parte do sonho dela, da sua segunda fuga, a fuga da realidade que a cerca, afinal, o filme é sobre isso. As escolhas estéticas, inclusive, ressaltam essa ideia, pois, enquanto Dorothy está em Kansas, o filme é preto e branco, mas, assim que ela chega ao mundo de Oz, o tudo ganha um colorido muito vibrante. Isso porque o filme usa a tecnologia da Technicolor e as cores dos cenários e figurinos são bem contrastantes.
Na transição entre o mundo real e seu sonho, acontece a transformação da Srta. Gulch (Margaret Hamilton) na Bruxa Má do Oeste. Esse fato indica que vai existir uma correspondência entre os personagens que já haviam aparecido e aqueles do mundo de Oz. Essa relação cria uma ponte sólida na história, pois, desse modo, os personagens não precisariam ser apresentados novamente, mas só reorganizados para se adequarem a nova situação. Os tios de Dorothy são os únicos que não aparecem, pois ela pensa em voltar o tempo todo para revê-los e pensa em como a sua tia pode estar preocupada com a sua ausência.
Ao chegar ao mundo de Oz, Dorothy é tida como heroína, porque matou a Bruxa Má do Leste sem querer. Ela logo percebe que está longe de casa e procura um jeito de voltar, porém a única solução é encontrar o poderoso mágico de Oz (Frank Morgan). No caminho, ela depara com um Espantalho (Ray Bolger) sem cérebro, um Homem-de-Lata (Jack Haley) sem coração e um Leão (Bert Lahr) sem coragem. O quarteto segue junto fugindo – e com Totó sempre atrás deles o que é, no mínino, engraçado, pois é como se Dorothy tivesse esquecido de que ele existia – da Bruxa Má do Oeste que quer os cintilantes sapatinhos vermelhos que Dorothy obteve da outra bruxa ao matá-la.
É, enfim, uma história bem simples, boba até para um público atual mais adulto que esteja acostumado aos filmes que não sejam tão transparentes. Mas vale ressaltar que, assim como os clássicos da Disney, esse é um musical infantil construído da maneira que permita que uma criança consiga entender a mensagem que a história deseja passar e todas as relações entre os personagens. Apesar disso, a época do seu lançamento, o filme fez sucesso entre os adultos, pois expressava o sentimento norte-americano de então: encontrar um lugar de paz em meio a tantas confusões (tensões pré-II Guerra).
Para assistir a esse filme, então, deve fazê-lo com os olhos de uma criança, porque, só assim, o espectador consegue captar toda a magia e a beleza dessa obra que encanta por suas cores, músicas e personagens. É preciso pensar como uma criança para entender a esperança que a pequena Dorothy e de seus amigos têm e que faz com que eles sejam capazes de cantar e dançar mesmo quando o presente é desconfortável e o futuro é incerto. Vale ressaltar, também, como, ao longo do final da história, os personagens, aos poucos, ganham aquilo que desejam sem recorrer a magia nenhuma, só com a força de vontade de enfrentar o perigo. Nesse aspecto, as atuações, por vezes, teatrais e bem características são como a “cereja em cima do bolo” uma vez que expressam com excelência os sentimentos dos personagens.
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