domingo, 7 de junho de 2009
"A marca da maldade" por Nilson Braga de Almeida
Um magnífico estudo sobre a personalidade humana. Eis o que Orson Welles realiza de forma convincente durante as quase duas horas do longa A Marca da Maldade, de 1958. Aliás, o personagem Hank Quinlan – que ele interpreta de forma extraordinária – traduz um resumo de tudo aquilo que o referido diretor tem a pretensão de sugerir ao espectador, mais especificamente em relação às contradições que envolvem a natureza do ser humano.
Num primeiro momento, o filme segue formalmente algumas das mais básicas características do cinema noir: fotografia com ampla definição de claro/escuro; um crime como ponto de partida para o desenrolar da história e as investigações que se desenvolvem acerca do mesmo; ambientes decadentes e imundos; imoralidade e corrupção; e cenas preferencialmente noturnas, permeiam toda a composição estética da obra. Entretanto, há duas claras exceções a essa classificação fílmica: o protagonista Vargas – vivido por Charlton Heston – é um homem honesto e que coloca a lei acima de tudo, sendo um exemplo a ser seguido – ou seja, trata-se do clássico mocinho da trama, inexistente de maneira geral neste gênero –; e a ausência da femme fatalle (mulher que acaba seduzindo e atrapalhando a vida do personagem principal).
E essa falta de entrega total às regras do noir acaba por ser uma valiosa dica de que a película não pode ser considerada como um simples drama policial. Aliás, ela vai muito além disso. Acreditando aparentemente que acompanharemos uma obra alinhada ordinariamente à estrutura habitual de um filme produzido na época, somos surpreendidos com uma narrativa complexa e cheia de pequenas subtramas, abundante em detalhes e em importantes subtextos, que a tornam, sem sombra de dúvida, diferenciada, sendo imprescindível para qualquer cinéfilo que se preze.
A história se inicia numa noite aparentemente tranquila de uma cidade fictícia, situada na fronteira entre o México e os EUA, e é concluída na noite do dia seguinte, durando aproximadamente 24 horas. Para contá-la, o cineasta opta por planos temporalmente longos, incluindo alguns planos-sequências (dentre eles, inclusive, o que inicia o filme é considerado um dos mais relevantes de todos os tempos), além de abusar da montagem paralela. Essa escolha do diretor resulta em sequências bastante dinâmicas e fortemente ligadas umas nas outras, que levam o filme a ter uma velocidade peculiar.
O jogo de sombras é um grandioso trunfo usado pela fotografia pois consegue aumentar ou diminuir personagens e reforçar suas ambiguidades, além de causar sensações bastante subjetivas a quem assiste o filme. Até certo ponto, as sombras sugerem o prolongamento do homem, sua alma, sua essência, assim como seu lado obscuro. É como se fossem verdadeiras figuras humanas participantes da ação, sendo contudo limitadas pela sua condição.
Outro aspecto técnico bem elaborado pelo autor é a iluminação. Ela esconde ou revela objetos, num momento estritamente necessário, servindo como suporte para que o diretor consiga seu objetivo apenas com as imagens, sem precisar recorrer a outros meios, como diálogos por exemplo. O constante aumento e diminuição da intensidade luminosa em algumas cenas (provavelmente extra-diegética), como acontece na do assassinato de Joe Grandi, gera os mais diversos entendimentos, pois pequenos detalhes importantes que são exibidos pouco a pouco na tela fazem com que cada um perceba tal situação de seu jeito, de acordo com suas experiências.
Aqui, a música tem papel fundamental, uma vez que ela molda de certa forma algumas cenas, participando delas ativamente, atuando como uma importante ferramenta de continuidade que claramente situa o espectador na trama. Os circuladores de ar do Hotel Mirador, por exemplo, surgem como emissores de sons e ruídos que não só incomodam, como também realmente perseguem determinados personagens, ocasionando neles tensão, medo, pavor. Isso também ocorre na escolha da intensidade do som para determinada cena, com a passagem do silêncio ou música ambiente, para o barulho ou estardalhaço, e vice-versa, utilizada várias vezes de forma instantânea. O desenho dos circuladores em forma de círculos concêntricos reforça ainda mais a idéia de que ali não existe saída, pois tudo está convergindo para o mesmo ponto, para o mesmo fim, e isso implica não ter escolhas.
O ponto de vista explorado não segue o modelo tradicional direcionado ao herói, ou seja, somos guiados a analisar cada personagem de acordo com seus objetivos, suas opiniões e ideologias. Com isso, Welles reforça a dualidade que a película pretende passar sobre o que é considerado bom e o que é considerado mau, afinal de contas, quase todos são ambíguos nas suas ações e decisões. O personagem vivido por ele age conforme o meio em que vive, seja certo ou errado – na verdade somos levados a refletir sobre o que é certo e o que é errado –, influenciando e também sendo transformado por ele. Suas atitudes provêm das incertezas que ocupam seu corpo e mente, interferindo definitivamente em seu ser.
É através do duelo de personalidades (Vargas e Quinlan) que Welles aborda todo o paradoxo sobre os princípios do ser humano. Sem filmar nenhum personagem sob uma perspectiva preconceituosa, ele não abre mão de mostrar que pode sim ser feito um julgamento das atitudes que eles tomam no decorrer da trama. Lembrando que essa antítese trabalhada no filme é facilmente transportada para o mundo real em que vivemos, somos levados a refletir sobre o fato de que todos nós, ao menos uma vez em nossas vidas, agimos de forma errada perante os costumes e normas impostas pela sociedade, pelas leis do ordenamento jurídico que regem nossa relação com os outros indivíduos.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário