domingo, 7 de junho de 2009

"Sombras e sobretudos" por Gabriel Muniz Queiroz



"O Terceiro Homem" de Carol Reed, 1949

Em momentos de crise financeira, a humanidade mergulha em mares de incerteza. Tudo parece turvo, amargo. Contrabando, crimes. Assim era a Viena do pós-guerra, dividida em setores: russo, britânico, francês, norte-americano. Nenhum charme, nenhuma música. Um clima de desânimo que parece acompanhar nosso início de novo século. No filme, Holly Martins [Joseph Cotten, exigência do produtor David O. Selznick] é um desajustado escritor de sexta categoria. Chega à cidade a convite de seu amigo Harry Lime [Orson Welles], que lhe oferece emprego por lá. Martins, logo ao chegar, e sem um centavo no bolso, não se dá conta do que lhe sucederá. Um tanto apressado, passa por baixo de uma escada... Não sabe a sorte que lhe espera. Falam-lhe da morte de seu amigo [segundo o porteiro do edifício: “já está no céu... ou no inferno”.]; vai ao enterro.

Até este momento um dos pontos altos da obra já é apresentado. A fotografia, primorosa, é um recurso característico da estética noir. Aqui temos as influências do expressionismo alemão [altos contrastes, claro-escuro, sombras, ângulos levemente inclinados] acentuando a variedade de detalhes dos cenários [interiores opulentos, escuros, noites pouco iluminadas]. O fotógrafo Robert Krasker merecidamente arrebatou o Oscar de Melhor Fotografia Preto e Branco por este filme. Mas esse é apenas o começo.

Chegando ao cemitério, os demais personagens principais são anunciados, mas não apresentados ainda. Um deles, apenas responde, indiferente, à pergunta de Martins sobre o nome do morto a ser enterrado. Os outros personagens observam desconfiados a presença do escritor. Uma mulher assiste ao enterro. O espectador tem então os personagens, suas identidades vêm depois. O primeiro deles segue o caminho de Martins, com seu sobretudo de couro brilhante, oferece-lhe carona. Aceita a gentileza, ele se apresenta como Major Calloway [Trevor Howard]. É o típico policial cínico com seu ar entediado e seu bigode cretino. Propõe uma bebida.

O anti-herói Martins [que seria interpretado por James Stewart, na escolha de Carol Reed], embriagado, passa informações sobre si: um escritor de novelas baratas, sem um tostão no bolso e desolado com a morte do amigo. Sujeito sem grandes perspectivas, que vê na procura da verdade sobre seu amigo um paralelo real com sua função frustrada de ficcionista. Entre personagens misteriosos, fugidios, com informações imprecisas, sempre com sobretudos, sempre com algo a esconder, encontrei em Anna Schimidt [Alida Valli] uma figura que foge um pouco do arquétipo da femme fatale.

Anna é uma mulher apaixonada pelo falecido, mas que durante todo o filme flerta com Martins na busca pela verdade sobre a morte do amante, mantendo-se, porém, fiel a Lime. É um pouco diferente da mulher misteriosa e sedutora que joga o tempo todo com os homens. Charmosa, ela é mais sutil, ao apenas demonstrar um nebuloso interesse em Martins, mas sua inclinação para o crime consiste em defender a integridade de Harry Lime. E é mostrada com uma beleza séria e resignada, em cenas de forte teor dramático, como a de sua prisão ou a de sua recusa a partir.

A trilha sonora, de Anton Karas, é bastante marcada por uma viola que funciona muito bem na maioria das cenas, como a da perseguição de Martins [depois da palestra a qual é convidado], mas em outras coloca um tom “positivo” em cenas onde deveria apresentar um caráter mais sombrio. Fora isso, a simplicidade e o timbre do instrumento, bem como a habilidade do instrumentista em retratar as cenas, torna a música um forte elemento de pontuação narrativa, de charme notável, principalmente nos trechos mais delicados, como os momentos de solidão e os diálogos entre Anna e Martins.

Outros personagens, de aparição curta, porém marcantes, são a criança e o gato. No decorrer do filme, um garotinho assiste a discussão entre Holly Martins e o porteiro do prédio, que presenciou a ocasião do acidente de Lime. Após a morte do porteiro, a criança aponta Martins como o assassino do homem que estava disposto e contar a verdade sobre o ocorrido. É um personagem de ligação narrativa, assim como o gato de Anna, animal de estimação que gostava de Harry, e protagoniza uma pequena seqüência até apresentar o personagem de Welles.

Como em diversos filmes classificados como noirs, os aspectos visuais carregam também parte da construção narrativa: além das já citadas especificidades do cenário, os personagens são envolvidos em sombras, física e psicologicamente. Trajam, sobretudo, sobretudos escuros [com o perdão do inevitável trocadilho]. Escondem-se do frio e surgem das sombras, como diz Martins ao Major Calloway: “Segui sua sombra [de Lime] e de repente... Aqui ele desapareceu!”.

Orson Welles [contratado por insistência do diretor] aparece no papel do suposto falecido. Embora sua presença ocorra apenas nos últimos 40 minutos da obra, depois de grandes reviravoltas, é crucial para o fechamento da trama. É um homem desacreditado do mundo, vendeu seu caráter em troca de dinheiro tendo, para isso, cometido diversos crimes: “não há mais heróis no mundo”, diz Lime. Não se importa com o amor de Anna, a quem trata com indiferença. Participa de duas das melhores cenas, a do encontro entra Martins e Lime na roda gigante, e a perseguição ao segundo no subterrâneo.

Na primeira, algumas alfinetadas políticas: Harry Lime é um criminoso defendido pela polícia soviética, mas com pensamento capitalista. Ele diz: “Teria pena de um daqueles pontinhos ali? [...] se lhe desse 20 libras por cada um deles, sinceramente, rejeitaria o dinheiro ou calcularia quanto poderia ganhar? Livre de impostos, meu velho”. E para isso, vende penicilina para os soviéticos. Na voz de Lime: “Ninguém pensa em termos de seres humanos. Os governos falam de pessoas e proletariado. Eu falo em bandidos e ladrões. É a mesma coisa”. E fala da guerra: “A Itália passou trinta anos sobre os Bórgia. Houve guerras, banhos de sangue e terror. Mas houve também Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. A Suíça tem o seu amor fraternal, séculos de democracia e de paz, o que produziram? O relógio cuco”.

Ainda nesta cena vale retomar os aspectos fotográficos do filme, que contam com uma composição extremamente elaborada com formas e movimentos circulares da roda gigante, formas retas, relação entre planos e profundidade muito bem construída, ângulos inclinados, além dos tons contrastantes do claro para o escuro: Harry veste-se em tons de preto, Holly em cinzentos mais claros, reforçando a sua condição moral.

Já na cena da emboscada e perseguição a Lime temos a composição mais bela do filme. A fotografia mais uma vez acerta em seus enquadramentos com sombras sobre os edifícios de estilo neoclássico em Viena, os personagens entram e saem das sombras, à noite, em uma rua vazia. A trilha sonora, dramática e charmosa, se encaixa perfeitamente com a composição elegante dos planos. A montagem dinamiza, mostrando diversos planos rápidos das personagens no cenário, acelerando quando começa a perseguição. Os ângulos de câmera e a iluminação no subterrâneo são os destaques da composição dos planos, Junto com a ação dos atores. Metaforicamente, o personagem de Welles, de sobretudo preto, chega literalmente ao fundo do poço. Sua moral corrompida o leva a seu destino. Holly Martins, que perseguia o amigo por um motivo, agora tinha outro. No intuito de fazer justiça, ele acaba por perder Anna, chegando assim a um final, bastante dramático. Se no começo, o escritor procurava o terceiro homem a matar seu amigo, neste momento ele acha em si mesmo a resposta.



FONTES DE CONSULTA


1. Textuais

MASCARELLO, Fernando. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006.

KORODI, Marco. Cinema Noir – Era uma Vez na América. Disponível em: http://www.interrogacaofilmes.com/textos.asp?texto=11
Acesso em: 02 mai 2009.


2. Documentos audiovisuais

O TERCEIRO HOMEM. (Reino Unido). Direção Carol Reed. PB, 105 min., 1949, DVD.


3. Portais Eletrônicos

Café com Pop - Crítica - O Terceiro Homem (1949). Da série “Clássicos do cinema”. Disponível em: http://www.cafecompop.com/2009/03/critica-o-terceiro-homem-1949/
Acesso em: 02 mai 2009.

Adoro Cinema - O Terceiro Homem. Disponível em:
http://www.adorocinema.com.br/filmes/terceiro-homem/terceiro-homem.asp
Acesso em: 02 mai 2009.

65 Anos de Cinema - O Terceiro Homem (1949) – The Third Man. Disponível em: http://www.65anosdecinema.pro.br/O_terceiro_homem.htm
Acesso em: 02 mai 2009.

Wikipédia – Grande Depressão. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Depress%C3%A3o
Acesso em: 02 mai 2009.

Chambel.NET – Film Noir. Disponível em: http://www.chambel.net/?p=211
Acesso em: 02 mai 2009.

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