sexta-feira, 19 de junho de 2009

"Parede invisível" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Argélia, anos 1950. Enquanto o mundo europeu ainda se recupera da guerra que travou entre si, novos conflitos surgem. O sentimento nacionalista cresce entre os países colonizados, o que leva a novos confrontos, travados contra o domínio de suas metrópoles. É nesse clima de tensão que encontramos Ali La Pointe [líder guerrilheiro] e mais três pessoas: um jovem, uma mulher, uma criança. Logo nas primeiras cenas de A Batalha de Argel [Argélia / Itália, 1965], de Gillo Pontecorvo, somos colocados diante da problemática que é discutida pelo filme.

Os quatro personagens acima são os únicos sobreviventes de uma organização guerrilheira, a Frente de Libertação Nacional da Argélia [FLN]. Estão diante do Exército Francês que ameaça explodir o esconderijo, caso não se rendam. Apenas uma falsa parede separa os dois lados do conflito. Uma luta entre inimigos desconhecidos. A parede divisora entre os dois lados do confronto ilustra um tema presente em todo o filme, a indiferença do ocupante e sua opção de não conhecer o ocupado.

A grande dificuldade do Coronel Mathieu e do exército francês consiste em identificar o inimigo. Inspirado no Coronel Jacques Massu – carrasco de Argel no conflito real –, Mathieu personifica o cinismo e a indiferença em relação ao adversário. Ele quer saber com quem disputa o domínio sobre o território e a população da Casbah, maior bairro popular da capital da colônia, e para isso aplica métodos de tortura, falando deles na imprensa com naturalidade.

A FLN, apoiada pela população, tendo noção desta incapacidade do opressor em reconhecer a diferença, utiliza como tática de guerrilha a neutralização das aparências. Diante do ódio cego do Bairro Europeu da cidade, que simplesmente escolhe seus culpados, o movimento pró-independência com algumas de suas integrantes devidamente caracterizadas como francesas, passam desapercebidas entre os europeus. Aqui é reforçada miopia que age contra aqueles que “parecem” inimigos, e são detidos, enquanto os superficialmente reconhecíveis aliados são liberados para o fluxo na Casbah.

Lançado em 1966, é o primeiro filme em longa-metragem da nação argelina. Na turbulência cultural, social e política dos anos 1960, A Batalha de Argel foi banida da França até 1971 [o primeiro cinema que o exibiu sofreu um atentado], assim como em diversos outros países, como o Brasil da ditadura militar. A película de ficção trata de maneira bastante realista os acontecimentos que ocorreram entre 1954 e 1957, tudo sobre a ótica dos argelinos.

O ponto de vista adotado procura apresentar a luta de um povo então colonizado contra a presença e a indiferença do estrangeiro, que insiste em ocupar o território. E para continuar no domínio, o colonialismo francês se vê na obrigação de reconhecer seu adversário. Na construção do real a partir da ótica dos ocupados o filme se utiliza de recursos da linguagem documental, como as narrações em off / radiofônicas e uso de imagens reais. Em meio a todo o tratamento realista das cenas fictícias, o filme afirma sua fluidez ao fazer os espectador se questionar sobre o que foi captado no momento dos acontecimentos reais e o que foi captado para a produção do filme.

Embora toda essa transparência, o filme se resolve muito bem como a ficção que é, de fato. Aspectos narrativos como o texto e seus subtextos, a dramaticidade das cenas de destruição e repressão; e a pontuação oferecida pela trilha sonora, colocam bem definida a reconstrução histórica do contexto do filme, embora ainda deixe alguns questionamentos sobre o que há de real e ficção. Num dos trechos de Argel, Mathieu se utiliza do cinema para falar do adversário, que pode ser qualquer um. Na metalinguagem desta cena, percebemos claramente a ineficácia dos franceses em identificar uma das guerrilheiras, vestida tal como uma européia, que passa diante da tela de Mathieu, sem que nenhum deles perceba nada além de sua beleza. Nesse momento o cinema se apresenta como um meio não apenas para se conhecer o que está invisível, como também para fazer – como o Coronel faz – uma reflexão sobre os métodos empregados pelos franceses.

Em outro momento, um dos líderes chega a afirmar que “eles não podem ou não querem ver a situação argelina”, informação confirmada por Mathieu, que, conseguindo capturar um dos líderes, comenta que se sente como se o conhecesse, pelo tempo que o procurou a partir de sua fotografia. Mais uma vez, a representação do real mediada pela máquina, o recorte do mundo, acaba por propor um olhar mais atento. O francês chegou a conhecer quase todos os principais líderes, conhecidos por seus retratos. No entanto, seus últimos adversários, pessoas de idade e gênero diferentes, com o mesmo ideal, ficam presos na parede da invisibilidade. Nunca chega a se conhecer.

Em A Batalha de Argel, a construção do realismo pelo cinema opta por um ponto de vista bem marcado. Embora a sedução da imagem e sua ligação com a realidade histórica coloquem a verossimilhança diante dos nossos olhos e ouvidos, sua narrativa opera muito bem como discurso de constituição formal dos fatos e das características dos personagens, reais ou inspirados na realidade. A imagem propõe uma interpretação histórica do ponto de vista do ocupado sobre o ocupante. O ocupante e seu não olhar.

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