domingo, 17 de abril de 2011

"Dia de Ira", por Carlos Roberto da Silva Júnior


A tradição, tanto religiosa como historiográfica, atribui a Tomás de Celano, frade franciscano que viveu no século XIII, a autoria daquele que viria a ser considerado não só um dos mais belos e austeros hinos da liturgia romana, mas também um dos monumentos poéticos da literatura universal — o Dies irae. Compostos em latim medieval e por troqueus de timbre sombrio e imprecatório, os versos desse poema extraordinário evocam visões grandiosas, as cenas aterradoras do último dia, dia de ira, ponto de inflexão do mundo, limite do tempo e soleira da eternidade — o dia do Juízo Final.

Difícil, pois, imaginar para um filme título tão sugestivo quanto Vredens dag (1943) — equivalente dinamarquês do nome do hino latino —, especialmente quando se trata de um filme de Carl Theodor Dreyer, diretor que, de uma forma ou de outra, costuma exprimir em seus filmes preocupações distintamente cristãs. O roteiro, contudo, é uma adaptação da peça Anne Pedersdotter (1908), do escritor norueguês Hans Wiers-Jenssen; o qual, por sua vez, baseou-se, para a concepção do drama, em um caso real de processo de bruxaria ocorrido no século XVI. A peça obteve grande sucesso na Noruega e também foi aclamada internacionalmente, sendo encenada em vários países da Europa e nos Estados Unidos, além de ter tido várias adaptações para o rádio. Desse modo, é necessário, ao se considerar o filme, ter sempre em mente as dificuldades de realização e transposição cinematográficas que tal superposição de referências supõe, à parte os problemas próprios a toda atualização histórica. Como, por razões óbvias, não tivemos acesso direto às suas fontes inspiradoras, trataremos exclusivamente do filme, cientes, está claro, de todas as conseqüências críticas decorrentes de tal negligência.

A despeito da imponência do seu título, o filme nos apresenta um enredo e um conjunto de imagens seguramente mais modestos. Estamos numa Escandinávia luterana, em 1623. Note-se, porém, que os acontecimentos reais, como foi dito acima, situam-se no século anterior. O país exato onde se passa a história não nos é informado. Embora os personagens falem dinamarquês, a atmosfera cultural poderia ser com semelhante adequação a dos territórios que compunham tanto a Dinamarca quanto a Suécia e a Noruega de então (essas imprecisões históricas não parecem ter para Dreyer outra função senão a de licença poética). A historiografia nos informa que, no século XVII, a diligência protestante estava em seu ápice nos países escandinavos, e a Igreja Luterana agia com o rigor próprio de uma estrutura de poder que busca se consolidar definitivamente. Foi também nesta época que a caça às bruxas na Europa atingiu seu estágio de paroxismo. Anne (Lisbeth Movin) é a jovem esposa do pastor da aldeia, Absalon Pederssøn (Thorkild Roose), que já era de idade avançada quando veio a esposá-la ainda menina, após a morte de sua primeira mulher. A mãe de Anne havia sido acusada de bruxaria, mas escapou à fogueira graças à intervenção interessada de Absalon. Este é o segredo que Herlofs Marte (Anna Svierkier), uma velha bruxa que é denunciada, ameaça revelar à comunidade se a sua sentença de execução não for revogada. Mas há segredos ainda mais graves que podem ser revelados. Martin (Preben Lerdorff Rye), filho de Absalon com sua primeira mulher, é tão jovem quanto Anne. Sua volta ao lar paternal inicia uma crise na família, pois desperta a atenção da jovem infeliz com seu esposo e seu casamento estéreis, que não têm muito a lhe oferecer além do afeto pastoral. Merete (Sigrid Neiiendam), velha matrona da casa, é a mãe de Absalon, e não demora a perceber a liaison dangereuse que se estabelece entre seu neto e sua nora. Estes são os elementos — que referem os temas do incesto, do conflito de gerações, do pecado, da culpa e da intolerância religiosa — a partir dos quais Dreyer constrói uma narrativa cinematográfica de grandíssimo valor estético.

O aspecto formal mais evidente do filme é a composição dos quadros. Quadros, mesmo, pois o diretor danês, fazendo uso magistral da luz, da postura, do posicionamento e da expressão dos atores, consegue a façanha de traduzir eficientemente para o preto-e-branco o conceito e a beleza da pintura dos mestres da Gouden Eeuw dos Países Baixos, especialmente certos retratos pintados por Rembrandt, Vermeer, Frans Hals, Bartholomeus van der Helst e Jan de Bray. Porém, enquanto nesses quadros neerlandeses tende a prevalecer uma jovialidade burguesa própria duma época de prosperidade econômica e florescimento das artes, está excluído dos quadros de Dreyer qualquer movimento mais exaltado, ainda que parta de um ambiente de perseguição, dor e angústia — em princípio, ambiente que também leva a excessos. Mesmo nos momentos de maior carga emocional — como quando Herlofs Marte é torturada e posta à fogueira, ou quando Absalon toma conhecimento da traição de sua esposa, ou quando Anne grita ao ver o corpo de seu marido tombar, fulminado pelo desgosto — mesmo então os gestos e os rostos são contidos como que por uma espécie de mecanismo (talvez a própria câmera do diretor) capaz de amortecer sua motivação e expressividade passionais e assim impedir que se propaguem indevidamente até que atinjam o domínio próprio da cor.

Além das vozes humanas, que se manifestam em forma de fala ou canto, apenas outro três sons se apresentam inequivocamente ao longo do filme: o sino da igreja, que anuncia o cumprimento da ordem de prisão dos acusados de bruxaria; o bater contínuo e desconfortável do relógio da casa de Absalon; e o rugido de uma tempestade que se abate sobre a aldeia no clímax dos acontecimentos. Todos eles parecem simbolizar a idéia da proximidade indefinida, porém certa, do fim dos tempos, que no filme é representado pela punição que sofrem, cada qual a seu modo, as personagens principais do filme.

Os cenários contribuem para a criação de uma atmosfera espessa, que exige das personagens uma movimentação vagarosa, uma respiração compassada. Chegamos a pensar no cheiro do claustro e dos tribunais. Mas esse efeito é alcançado com uma utilização perfeitamente econômica do espaço, que em sua maior parte é ocupado pela sombra, pelo escuro, pelo negro. As janelas são um elemento importante e uma clara referência a Vermeer; no filme, contudo, elas (que estão geralmente fechadas) parecem simbolizar uma espécie de meio metafísico, translúcido, irredutível, interposto entre as próprias personagens, e entre estas e o mundo, ou a verdade, ou Deus. Aqui, é lícito lembrar a seguinte passagem bíblica: “Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido.” (I Coríntios 13:12). Assim, embora permitindo a passagem da luz, as janelas em [i]Vedrens Dag[/i] estão sempre embaçadas, e nos ocultam a natureza daquilo que está, ou poderá estar do outro lado. Há também cenas externas, mas elas são escassas e, no fundo, contentam-se em ilustrar a alegria franzina de Anne e Martin quando das suas escapadelas para bosques insulsos.

A interpretação dos atores também é notável, particularmente a de Thorkild Roose. Sua compleição física em si é índice do caráter de sua personagem, mas a isso ele acrescenta a execução quase perfeita de uma harmonia entre a modulação da sua voz, seu modo de caminhar, os movimentos da sua cabeça, sua face, das outras partes muito menos exigidas do seu corpo: e do seu figurino. Absalon, mais que Anne, em tese a protagonista do filme, é o que melhor, julgamos, representa o espírito da época em que se desenvolve a trama. Não que os anseios de Anne — que vive a buscar um idílio para além da moral familiar, e que, ao se tornar transgressora nesse nível, pode passar facilmente por única amante da liberdade e mártir da felicidade individual — sejam ilegítimos ou indignos de empatia. É que Absalon representa o desespero do homem que teme e treme, não diante da vida ou da morte, mas diante de Deus; representa aquela angústia do pecado, de que nos fala Kierkegaard, que somente experimenta aquele que tem consciência da queda. Nenhum tribunal ou fogueira do mundo é mais aterrorizante, para o crente pleno, que a punição derradeira reservada aos que forem condenados pelo supremo juiz no dia do último juízo. Ressoam na alma de Absalon os versos de Tomás de Celano:

“Iudex ergo cum sedébit,
Quidquid latet, apparébit:
Nil inúltum remanébit.” (MISSALE ROMANUM, 1962, p. 117).


Naturalmente, Anne também se angustia. Mas o objeto de sua angústia não é mais que o risco de uma relação amorosa interdita pelos costumes. Ela se revolta, mas trata-se de uma insurreição puramente sentimental, jamais luciferina; e ainda que também seja acusada de bruxaria, não podemos acreditar que suas intenções pudessem alguma vez atrair os poderes infernais. Anne transgride, mas para ela o incesto, sua vingança e o orgulho do seu auto-sacrifício serão consumidos com seu corpo nas fogueiras do século. Não repercutirão na eternidade. Anne é quase moderna. Para os modernos não existe o pecado, apenas o crime, que, em última análise, é para a modernidade, mesmo que ainda nos ofendamos com a idéia, uma mera questão de jurisprudência.

Do início ao fim o filme alude à mão austera e providencial do diretor, mas sem demonstrações gratuitas de autoridade. É a mesma mão que, por métodos rigorosos, havia domado a expressão dos sentimentos lancinantes de Falconetti em La Passion de Jeanne d'Arc (1928), e que por pouco não levou a atriz francesa ao colapso, numa espécie de implosão emocional. Mas, em Vredens Dag, Dreyer tenta dominar ainda um novo elemento: a voz; embora já tivesse realizado Vampyr (1932), tecnicamente seu primeiro filme falado, somente agora se inicia a conquista, que viria a se consolidar nos seus últimos trabalhos. Enfim, considerado em sua totalidade, pode-se dizer que Vredens Dag é um modelo não só de drama histórico cinematográfico, mas também — nos limites do gênero e para além deste — de esmero estético alcançado com economia de meios e a exclusão metódica do ornamento, sem prejuízo para o prazer dos olhos e a saúde do intelecto.

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